segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Ainda há espaço para mim?


Somos todos pessoas muito interessantes. Temos vias cheias, recheadas com projectos, cursos, teses, viagens, amigos, saídas, jantares, cafés, ginásio, conferências. Sim, de facto termos vidas cheias… de nada.
Estamos tão (pre)ocupados a participar em tudo, a conseguir grandes feitos, a manter dois empregos, a fazer uma tese, a satisfazer um rol de amigos, que não sobra espaço para mais nada. Nem para mais ninguém.
Será que temos espaço nas nossas preenchidíssimas vidas para encaixar uma meia laranja?
Reformulo: será que a nossa meia laranja ainda tem espaço na sua vida para nos encaixar a nós?
O que torna uma pessoa interessante são os diversos interesses que ela própria tem. Dificilmente andaríamos de beicinho caído por um tipo que tem um daqueles empregos das 9 às 5, a carimbar papéis e a atender telefones, e que vai para casa babar-se no sofá enquanto vê televisão e come jantares de micro-ondas. Daqueles que nunca foi mais além de Badajoz para comprar caramelos, que só consegue discutir futebol e o estado do tempo.
Agora, imaginem um tipo que salva vidas num hospital, que tem uma empresa, que escreve crónicas, que faz os aviões voar, que já tirou 2 ou 3 licenciaturas, que anda a aprender mandarim, que fez um curso de culinário, que todos os dias corre 10km, que pratica surf ao fim de semana, que constrói casas nas arvores, que joga futebol ou basquete com os amigos, que recolhe cãezinhos abandonados nas ruas, que deu a volta ao mundo de mochila às costas e conseguiu até entrar no Butão. Por este é fácil cair de quatro.
Imaginem tudo isto. Ou uma pequenina parte que seja. E imaginem uma existência com esta criatura. Viver deslumbrada com os seus encantos, os seus talentos. Poder falar dele aos amigos, contar tudo o que ele faz. E pensar na sorte que temos em tê-lo na nossa vida. Ou antes, em não tê-lo. Por muito pequeninas que sejamos, onde raio íamos caber no meio de tanta coisa?
Quando passaríamos tempo juntos? Ao fim do dia, quando chega cansado a casa e só quer relaxar e ir para a cama? Quase aposto que não terá muito apetite para conversar, para ouvir como correu o nosso dia. Até porque o dele vai ser sempre bem mais interessante que o nosso. Ao fim de semana? No feriado? Durante as férias? Esqueçam tudo o que pensavam sobre programas a dois nestas alturas. Não há tempo. Não há espaço.
Se alguém dos que me está agora a ler se apaixonou por uma pessoa interessante já deve ter compreendido por esta altura que passará os fins-de-semana sozinho em casa a trabalhar, a noite sozinho no sofá a ver filmes, os feriados sozinho a tomar café numa esplanada e a fingir que lê o jornal, as férias sozinho na praia sem ninguém que lhe espalhe bronzeador nas costas. Enfim, não necessariamente sozinho. É para isso que servem os amigos, as amigas, os wanna be something else. Para nos arrastar fora de casa, nos levar a jantar, nos obrigar a tirar férias. E, uma vez por outra, para nos perguntar se temos a certeza de que é isto que queremos (porque os nosso amigos foram bem mais ajuizados e tiveram o bom senso de escolher alguém igualmente interessante, mas talvez um bocadinho menos, e por isso mesmo, por causa desse menos, mais disponível para estar presente).E nós respondemos que sim, claro que temos certeza, somos tão felizes… E entretanto já olhámos meia dúzia de vezes para o relógio, e outra dúzia de vezes para o telefone só para ter a certeza que ele não ligou.
Sabemos que não vale a pena programar nada para o fim-de-semana porque certamente que vai parecer alguma urgência que se irá sobrepor ao nosso fútil plano de passar uns dias fora. Nas férias o melhor é inscrevermos num curso no estrangeiro, e assim parece que também nós temos planos importantes. Ou então viajamos com as amigas single, se é que ainda sobra alguma. Mas claro que elas dispõem de uma margem de manobra que nós não temos porque, afinal, nós não somos single. E só estamos ali, no meio de gente desimpedida e aventureira, por mero acidente de percurso. Nós temos alguém à nossa espera por isso há uma série de comportamentos que nos estão vedados. Sim, à nossa espera. Provavelmente já nem se lembra disso, ou está do outro lado do mundo, ou anda ocupadíssimo a salvar o universo, mas está por aí algures.
Finalmente lá nos convencemos que a única forma de sobreviver a isto com alguma sanidade mental é sermos, nós também, pessoas daquelas com milhentos planos, empregos exigentes, saídas todos os sábados. E embarcamos nesta vida, na qual descobrimos que somos efectivamente muito felizes e nos sentimos realizados, não fosse aquele pequeno óbice de termos perdido qualquer contacto com a meia laranja. É que se era difícil conjugar uma agenda complicada tornou-se impossível conjugar duas agendas complicadas. De modo que mantemos a casa em conjunto, onde até dormimos na mesma cama, mas ora está um cansado ora está o outro, de forma que em bom rigor somos companheiros de casa que partilham o mesmo quarto e o mesmo endereço postal. Encontramo-los de quando em vez nas festividades e continuamos a entregar o IRS em conjunto porque saí mais barato. Portanto, sim ... somos um bocadinho mais do que meros companheiros de casa.

Botton line: as pessoas interessantes seriam bem mais interessantes se fossem um bocadinho menos interessantes.

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