sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Será que te deixarei ir?
Tenho pensado muito, e falado muito, e escrito um bocadinho, sobre testamento vital, eutanásia, auxilio ao suicídio, e temas afins. E desde que me recordo de ter começado a reflectir sobre estas questões sempre me foi muito evidente que se há direito que se sobreleve acima de todos os outros, esse direito há-de ser a última das liberdades (ou, numa outra perspectiva, a primeira), qual seja, a de decidir acerca da própria morte, pelo menos na medida em que o destino nos permite fazê-lo e não acaba connosco numa estrada qualquer porque um idiota bebeu demais ou conduz distraído com o telemóvel.
Morro de pavor de perder o controlo sobre a forma como hei-de morrer. E se um dia eu terminar amarrada a uma cama, paralisada por alguma doença ou acidente, mas com um cérebro ainda tão alerta que definha a cada diz que passa perante a impossibilidade de viver condignamente a vida que me passa ao lado… se isso acontecer… ponham fim à minha miséria por favor.
Em suma, tenho sido até ao momento uma das mais acérrimas defensoras do direito à vida enquanto direito a decidir quando e em termos queremos sair deste filme.
E creio que o continuo a ser. Pelo menos no que a mim respeita. Mas temo estar a cair numa tremenda hipocrisia e a não conseguir defender para os outros aquele mesmo direito que invoco para mim. Não em relação a quaisquer “outros”, entenda-se. Para a esmagadora maioria dos milhares de milhões de cidadãos do planeta mantenho a minha tese primeira. Mas dentro desses milhares de milhões há alguns centenas de pessoas de quem gosto. E dentro dessas centenas há dois punhados deles (literalmente, pois o número cabe nos dedos das duas mãos) de que gosto muito. Que amo, no sentido em que se amam as pessoas que são muito especiais para nós, o que no meu caso inclui pais, (irmãos não tenho), meia-laranja, e alguns outros que me são imensamente próximos, partilhemos algum ADN ou não.
Teoricamente defendo para esta dezena de pessoas exactamente o mesmo direito. Mais: defendo-o até com maior vigor, porque a última coisa que lhes desejo é qualquer espécie de sofrimento, e tenho para mim que há modalidades de existência das quais desapareceu todo a réstia de dignidade, de modo que o qualificativo de vida só se lhes aplica em sentido biológico.
Mas, na prática, que faria eu se uma dessas pessoas estivesse no hospital e pedisse para morrer, mesmo sabendo que o seu sofrimento vai para além do que um ser humano deveria suportar? Que faria eu se assinasse ali na minha frente uma ordem de não reanimação, mesmo sabendo que a possibilidade de vida que a espera não difere da do mero vegetal?
Se um dia uma destas situações se me deparar, serei suficientemente forte e corajosa para os deixar ir?
Não me recordo de sentir medo da morte. Mas aqui não se trata de uma questão de coragem. Será mais bem tolice ou desprendimento pela vida terrena. Os meus receios prendem-se todos com outros aspectos que caminham junto à morte. Temo a forma de morrer, porque a minha mínima, minimissima, capacidade de aguentar a dor almeja por um fim rápido, sereno e, na medida do possível, indolor. Mas temo sobretudo a perda, a possibilidade de que as pessoas de quem mais gosto morram antes de mim.
Quando era pequenina e não usava saltos altos lembro-me de meramente pensar nesta hipotética possibilidade e ficar logo com o coração a bater tanto a ponto de ter que esconder a cabeça debaixo da almofada, atormentada que estava com esse perigo. De modo que este meu desejo de partir antes daqueles de quem mais gosto não tem nada a ver com altruísmo, ou bravura, ou qualquer sentimento nobre. É tudo uma questão de cobardia e de incapacidade de lidar com a perda. Não suporto deixar as pessoas de quem gosto.
Por alguma boa vontade das forças cósmicas fui até ao momento poupada à morte daqueles que verdadeiramente me são próximos. Não sei o que isso é, e sofro com o mero pensamento de que um dia, eventualmente, saberei. Mas noutros termos e de outras formas já perdi pelos caminhos da vida pessoas que me eram muito especiais. E se há coisa que aprendi é que não lido nada bem com isso. Ninguém lida, é certo. Mas eu, dramática e melodramática como sou, levo as coisas mais a peito, e deixo-me cair tão fundo que chego a pensar se chegarei alguma manhã à superfície.
Voltando à pergunta inicial: que faria eu perante a morte eminente e, mais do que isso, desejada e solicitada, por uma dessas pessoas especiais? Atingirei aquela abnegação que lhes permitirá ir em paz?
Em bom rigor, não há nada que eu, ou qualquer um de nós, possa fazer. Mesmo não se legitimando o testamento vital, as recusas de tratamento são autorizadas por lei, que inclusivamente eleva a ilícito criminal o comportamento do médico que actua contra a recusa expressa do paciente. E eu aplaudo este regime. Pelo menos quando me toca a mim. Porque quanto tocar àqueles que amo… acredito que não serei o suficientemente forte e congruente comigo própria para o aceitar passivamente.
Não, não creio que te vá deixar ir assim. Gostava de ser essa “bigger person”, mas não sou. Desculpa.
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Caramba, nem de propósito. Tenho a incumbência, num tempo próximo, de falar sobre esse tema a um grupo de estudantes, e tb me debato com o mesmo dilema. Se fosse comigo, sim, desliguem tudo, que o que mais me assusta não é a morte, é a degradação da vida até ao ultimo segundo. Doer. Sofrer. não comunicar. ser alvo da pena alheia, e causar o sofrimentos dos entes queridos. Se fosse com alguém muito querido, qual seria a minha reacção? colaborar para o desaparecimento daquela pessoa, que nunca desapareceria da minha consciência, ou acabar com um sofrimento que eu própria não seria capaz de suportar? Só passando por isso, e espero que nunca aconteça. Entretanto, vou defendendo o direito a uma morte digna. tal como o direito à vida, e à disposição sobre ela, até ao seu fim.
ResponderEliminarExcelente, Vera, como sempre.
Espero JAMAIS ter de tomar uma decisão dessas. Gostava que me deixassem partir, mas não deixaria ninguém... egoísmo? Sim. Mas não os largaria
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