quinta-feira, 29 de abril de 2010

Homo non- sisus




Sou um daqueles seres menos desenvolvidos que ainda têm dentes do siso a encher a boca e, para meu mal, a provocar sérias dores de dentes.
Ontem mesmo preparava-me para tirar outro desses pedregulhos da minha boquinha, mas o dentista explicou-me que não o poderia fazer dado que a coisa estava tão complicada que só no hospital, para o caso de surgir alguma complicação. Penso que quando na mesma frase se juntam as palavras “hospital” e “complicação” a empreitada não se antevê fácil, de modo que decidi para com os meus sapatos (que botões uso pouco) viver com ele enquanto o danadinho não decidir pedir o divórcio da minha gengiva.
Parece que cerca de 99% por cento das criaturas da espécie humana conservem ainda estes resquícios do tempo em que vivíamos nas cavernas e comíamos mamutes. Os restantes 1%, bem, esses, são seres superiores que conseguiram prescindir deles. Mais perfeitos. Os seres humanos do futuro.
O que leva a questionar: para além de não terem dentes do siso, que outras características terão estes post-humanos? Será que ainda cospem no chão? Será que fecham a porta na cara da quem vem atrás? Será que se coçam em público, particularmente nas partes baixas? Será que os espécimes masculinos já aprenderam a mudar uma fralda, a respeitar e tratar como igual as suas companheiras e recordar-se das datas especiais? Será que os espécimes femininos já conseguem mudar um pneu, pagar as suas próprias contas e deixar-se de chantagens emocionais? Será que já aderiram ao banhinho diário? Será que se deixaram de pulseiras de outro e crucifixos ao peito? Será que na parte traseira do carro ainda usam almofadas de cetim e chapéus de crochet para esconder o papel higiénico? E por falar em carros, será que já ultrapassaram a moda dos carros tuning? Será que ainda deixam crescer a unhaca do dedo mindinho para propósitos que nem ouso antever? Será que falam ao telemóvel no cinema? Será que mastigam de boca cheia, e fazem questão de abrir a goela para que os circundantes possam ter uma bela vista de restos de comida semi-triturada? Será que aproveitam o guardanapo para se assoarem? Será que se regozijam com o sofrimento alheio, seja humano seja dos outros animais? Será que ainda ficam tribalmente violentos nos estádios de futebol? Será que subjugam os que têm uma diferente cor de pele?
Não pode ser um mero dente – ou melhor, quatro meros dentes – a fazer de nós seres mais evoluídos. Claro que sempre se pode dizer que esta nota nos afasta mais dos animais e nos distingue da pura besta carnívora. Mas, pergunto eu, serão os (outros) animais necessariamente menos evoluídos do que nós? Nunca ouvi dizer que uma rebanho de ovelhas tivesse bombardeado outro rebanho por questões religiosas, nem tão-pouco que ande por aí a vaguear um gato dealer que trafique substâncias ilícitas que mata milhares de gatos, inclusive gatinhos, e muito menos que algum hipopótamo incompetente e corrupto que trabalhe numa empresa pública onde chegou devido ao nome de família e aos enredos dos jobs for the boys, caindo anualmente na sua conta bancária mais de um milhão de euros. Nem alguma vez me chegou aos ouvidos que haja vacas que morram de fome para poder caber em bikinis ou que alguma escaravelha teime porque teime em ter viagens pagas com o dinheiro dos contribuintes entre o Parlamento e o Paris das escaravelhas.
Hás uns anos atrás alguém perguntava, num momento que ficou célebre, “e o burro sou eu?”
Bem, não antevejo semelhante momento de celebridade, mas acho que a pergunta que se impõe é esta: “e os humanos somos nós?” .

4 comentários:

  1. Verinha, SAS, uma obra de arte este teu texto! Muitos parabéns! :) Adorei e penso que ando deliciada com esta faceta tua! :) Gostei muito de toda a estrutura, onde começou e onde terminou. Adorei as ironias e as metáforas e sabes, partilho da tua conclusão. Faço parte dos comuns mortais, com quatro (quer dizer, só dois, que os outros pediram ordem de restrição) dentes do siso e, mesmo assim, olhar em volta, não entender que caminho estamos a escolher e perceber que é preciso muita lata para muitos de nós, muitas vezes, nos chamarmos de humanos.

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  2. Princesa, fiquei sem jeito. Quase me apatece dar-te o meu reino.
    O meu reino por um dente. Ou será o meu reino por um cavalo??? Bem, como a cavalo dado não se olha o dente fica tudo em familia

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  3. Olá Vera, abri meu Face book e encontrei uns comentários de meu amigo André e estava lá a foto que não acho que seja horrível, há pior com dentes brancos com a técnica da laser. recordo vagamente quando era aluno em Rabat, dum Professor meu que questionava nós, o que é o belo e o feio? O belo para a maioria era o branco com cabelo liso, de preferência loiro, o resto é feio dai que advêm uma certa gourmondie pelas blond's women. Isso Vera é a propósito de algumas ideias que vieram no seu texto bonito, cheio de metáforas com perfil de alguém não conformista, que não anda como um carneiro atrás o pastor, que pode ser uma pessoa fatal, é que o pastor em plena solidão acabava por satisfazer sua sexualidade com as ovelhas, vacas, burras, relação que podia durar anos, sem conhecer nenhuma quebra. Hoje vejo que o homem e a mulher já não encontram satisfação em nenhum lado, apesar de todo o avanço no campo do saber da sexualidade e da estética que tornou coisa banal, o padrão de Cleópatra tornou peça chave. Quero chegar com esse raciocínio meu à questão seguinte: que significado hoje têm: o belo e o feio? A foto colocada é bela ou feia? O que é o bem? O mal? Correcto e incorrecto, violento e o meigo, sincero e o cínico, Amigo e o inimigo, leal e traidor? O verdadeiro e o falso, o justo e o injusto? O democrático e o autoritário versus sectário? Tantas perguntas que não tem resposta, há quem tem resposta mas que teme falar, há cada vez menos gente corajosa e mais carneiros versus the Boys and girls (nem qualquer uma só as bonitas, peitos grandes, bom traseiro, boca e lábios à moda da ex deputada, pivot de tv, e hoje desempregada), e que esteja sempre disponível a dar carinho e mimo, convém ser nas viagens e reuniões tardios de trabalho) of jobs. Alguém explica como uma menina, que nunca na vida escreveu um artigo académico. De repente alguém decidiu (mão de Deus) pôr a nome da senhora numa folha A4 e que o povo vai votar nela sem saber os nomes que estão na Folha A4, como isso é possível meu Deus! Mais, a mulher quer estar longe do local de trabalho! e da cidade onde está seu trabalho e longe dos pobres que deram milhares de votos para que ela tenha uma cadeira na casa que é símbolo máximo da representação do estado e da nação!!! E agora me lembro de outra senhora jornalista que num belo dia sonhou com uma fantasia igual à da menina Inês, ou seja ter uma cadeira no mesmo edifício símbolo máximo da nossa democracia (alcançada com muito sangue derramado) e do estado de direito,e entrou sim senhor, lá ficou uns 10 meses e depois numa outra noite fantasiou com outro cargo, conselheira cultural na embaixada da Republica Portuguesa em Londres,onde o Marquês Pombal trabalhou sete anos antes de voltar ao Portugal em que teve que aplicar o British sprit e pôr em ordem o país. A nossa jornalista foi lá, com um salário duas vezes maior do que o do presidente da República, e mal chegou ao posto de trabalho, passou uns poucos meses e decidiu voltar à casa, resumindo no espaço de dois anos andou a experimentar cargos por mera fantasia, era só telefonar aos big boss, e lá está.
    Não sei que acrescentar mais, talvez a frase de Pedro Santana Lopes quando foi interrompido por uma jornalista, para mostrar a chegada dum treinador de bola, em que disse «o país esta doido» eu não diria o país, diria sim, há cada vez, gente neurótica, se o Marquês Pombal ressuscitasse e ver como estão as coisas, terá logo um AVC.
    Mohammed Nadir

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  4. Habibi, acho que apanhaste muito bem as minhas palavras. Isso não foi apenas um comment, mas um personal statement.
    Gostei de te ler.

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