sábado, 20 de março de 2010

Histórias de pais


Os pais são criaturas estranhas nas nossas vidas.
Embora nos amem, mas não sabem bem como amar-nos.
Não esqueçamos que nós, os da minha geração, somos filhos de uma geração onde os homens eram homens… seja lá o que for que isso signifique. Mas mesmo que ninguém compreenda o conteúdo nuclear da masculinidade, ainda assim os nossos avós tinham algumas ideias básicas acerca da educação dos filhos (meninos: subentenda-se): um homem não chora, um homem não se lamenta, um homem não se interessa por coisas de mulheres.
Estes meninos cresceram e transformara-se em pais. Eles próprios tiveram meninos e meninas, e alguns continuaram com dificuldades imensas para estabelecer laços afectivos que fossem para além do beijinho de boa noite.
Os pais são assim. Ou melhor, os pais eram assim.
As mães, mesmo as que trabalhavam fora de casa, passavam mais tempo connosco. Já os pais, saiam bem cedo, antes mesmo de o sol nos acordar, e chegavam noite dentro, com pouca paciência para as nossas birras e cheios de vontade de ir para a cama. A sua presença nas nossas vidas era tão escassa que nos nossos primeiros anos quase pensávamos que era algum primo que vivia no estrangeiro e que nos visitava de vez em quando.
Eram bem mais intolerantes do que as mães. Aliás, a ameaça mais aterrorizante das nossas infâncias era, provavelmente, o “se eu conto ao teu pai”, o que nos levou a engendrar mil e quinhentas maneiras de conseguir comprar o silêncio materno.
Eram também menos “modernos”, once again… whatever it means. Implicavam com os nossos devaneios linguísticos (e não é que agora sou eu que fico doida com os “bués” e afins, que mesmo estando no dicionário ainda não me convencem), com as nossas roupas, com as tatuagens e os piercings, com as saídas à noite, e já nem falo das aventuras com o primeiro namoradinho que nos pegou na mão.
O meu pai era assim. Curiosamente, só agora o começo a conhecer melhor e a compreender o homem fantástico que ele é. E procurar para os meus filhos um pai assim.
Desde o final da minha infância, e até terminar os tempos de teen, que a nossa co-existência era tudo menos pacifica. Uma autêntica guerra fria dentro de casa, com as partes beligerantes a explodir à mais pequena provocação, e a minha mãe no meio, como se fosse uma organização de peace keeeping, mas daquelas das NU que não conseguem paz nenhuma.
Agora, como mulher, compreendo o homem que o meu pai é. E as recordações que tenho dele são intensas, profundas e marcantes.
Foi ele que me ensinou a andar de bicicleta sem rodinhas; deu-me explicações de matemática antes do jantar, ainda que isso tenha implicado gritar até ficar rouco porque eu não metia na cabeça as equações; deu-me dinheiro para as minhas primeiras Doc Martens, que abominava, e não se cansava de se martirizar por o ter feito; lançou-me olhares acutilantes quando me atrevi a usar mini-saia ao pé dele, mandando-me mudar de roupa e pregando-me tal sermão que ainda hoje, quando estamos juntos, visto-me como a minha avó; ensinou-me a conduzir ainda que isso lhe tenha custado vários ataques cardíacos; e quando comecei a viajar ia religiosamente ao aeroporto levar-me e buscar-me, percorrendo quilómetros nestas expedições.
Quem o ouvir falar de mim pensa que sou algum prémio Nobel. Esta é uma coisa que nunca esperei, afinal, para quem tanto queria um rapaz (nome escolhido: Ricardo) parece que se dá por bastante satisfeito com a menina.
Eis outra coisa curiosa. Sendo ele da velha-guarda vive cheio de ideias feitas sobre o que as meninas e os meninos podem fazer, mas a verdade é que eu sempre fiquei de fora desses estereótipos. Aliás, das histórias mais carinhosas que guardo dele está a conversa que tivemos quando decidi ir para África. Nós os três, a santíssima trindade familiar, na mesma linha telefónica, tentávamos lidar com a minha decisão da melhor forma que sabíamos. Isto é: eu a falar desalmadamente, a minha mãe a soluçar pela sua menina e o meu pai em silêncio. Pensei que ficaria em estado de choque durante semanas, mas surpreendentemente diz-me: “Vai filha, vai e mostra-lhes que és boa e sabes fazer as coisas bem”. Não precisei de mais nenhum outro incentivo.
Se eu podia viver sem o meu pai? Podia, mas não seria a mesma coisa. Nomeadamente, eu não seria a mesma pessoa.

2 comentários:

  1. penso exactamente o mesmo do meu pai. Foi ele que me levou a uma discoteca pela 1ª vez (a falecida IRS em albufeira, quem mandou fechar aquilo????), ensinou a conduzir, e me instruiu, numa conversa muito embaraçosa para mim, sobre essa característica dos homens que é passarem a vida a aproveitarem-se de nós "vai haver uma altura em que vão andar atras de ti com as conversas mais melosas - é tudo conversa de engate - só querem esperar pela oportunidade e pumba". "e pumba"!!! nunca mais me esqueci daquela conversa, levei-a muito a sério, porque foi o MEU PAI q disse. E só ganhei com isso.
    Só tenho pena de não ser tudo aquilo que o meu pai queria que eu fosse, só porque ele acredita q eu era capaz de muito mais... esse desgosto é tanto meu como dele.

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  2. Não creio que algum pai viva desgostoso com uma senhora-filha assim.

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