segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Ensaio sobre a solidão


Pela estação ecoava a voz de “menina de rádio”, anunciando que todos os comboios estavam atrasadas em virtude de um acidente nas linhas. Um suicídio, ao que parece. Caramba, entre tantas formas de as pessoas se matarem têm logo que escolher uma que causa transtorno a tanta gente. Não a mim, porém. É que enquanto à minha volta o povinho se rebelava contra o poder absoluto do monarca CP, eu dei por mim a pensar, simplesmente, que era aborrecido. É que todos os demais tinham compromissos, gente à sua espera, jantares que estavam a ficar frios, crianças que reclamavam pelos seus mimos. Já eu… só me tinha a mim. Reformulo: já eu, só me tenho a mim. Nem sequer existe na minha vida um cachorrinho que anseie pela minha chegada para ir dar o seu passeio. Na verdade, é-me mais ou menos indiferente chegar às 8 da noite, às 9, às 4 da manhã, ou no tarde seguinte. Ou nunca chegar até. Simplesmente, porque eu não tenho ninguém à espera.
Por isso sou sempre a última a sair do escritório. Por minha vontade até lá dormir. Nem sei porque preciso de casa. Não fosse o problema de alojar as minhas caixas de sapatos e de livros bem que podia viver debaixo da ponte. É que ter uma casa pressupõe ter uma porta onde desejamos meter a chave na fechadura para entrar na home sweet home, onde há uma lareira acesa e um chocolate quente à nossa espera. Mas no meu caso, o na melhor das hipóteses tenho um pequeno aquecedor a óleo e um daqueles tabuleiros de comida pré-feira que meto no micro-ondas.
Há muito que desisti de cozinhar. Apesar de por vezes acreditar que nesta confusão que é a minha cabeça saltitam várias personalidades diferentes, o certo é que não existe uma Vera gourmet capaz de elogiar as aventuras culinárias da Vera cozinheira.
Em regra vivo bem comigo. Mas há dias em que gostava de ter um “contigo” com quem poder partilhar o nada que tenho. Ontem foi um desses dias. Sobrevivi a uma catástrofe emocional. Reconheço que para alguns seria um pequeno furo na estrada, mas para mim, que atirei o brio profissional para o topo da minha pirâmide de prioridades, aquilo foi um autêntico choque em cadeira. Pardon my french, mas diria mesmo que uma autêntica filha da putice o que me fizeram. Que bem me tinha sabido umas festinhas na cabeça, coisas melosas ditas com voz suave, uma mera presença física que mais não fosse. Não aconteceu assim. Talvez pelo melhor. O que não nos mata torna-nos mais fortes… dizem.
Claro que há dias diferentes. Também eu tenho os meus momentos de animal social. Reuniões, festas, jantaradas, saídas à noite. Mas, dê lá por onde der, a Cinderela tem que voltar para casa, nem que seja na meia-noite do outro dia. E quando volta… só fica ela, a abóbora e os ratinhos.
Because, in the end of the day, we are all alone.
E quanto mais depressa percebermos isso melhor vamos conseguir partilhar a vida com a nossa solidão.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Será que te deixarei ir?


Tenho pensado muito, e falado muito, e escrito um bocadinho, sobre testamento vital, eutanásia, auxilio ao suicídio, e temas afins. E desde que me recordo de ter começado a reflectir sobre estas questões sempre me foi muito evidente que se há direito que se sobreleve acima de todos os outros, esse direito há-de ser a última das liberdades (ou, numa outra perspectiva, a primeira), qual seja, a de decidir acerca da própria morte, pelo menos na medida em que o destino nos permite fazê-lo e não acaba connosco numa estrada qualquer porque um idiota bebeu demais ou conduz distraído com o telemóvel.
Morro de pavor de perder o controlo sobre a forma como hei-de morrer. E se um dia eu terminar amarrada a uma cama, paralisada por alguma doença ou acidente, mas com um cérebro ainda tão alerta que definha a cada diz que passa perante a impossibilidade de viver condignamente a vida que me passa ao lado… se isso acontecer… ponham fim à minha miséria por favor.
Em suma, tenho sido até ao momento uma das mais acérrimas defensoras do direito à vida enquanto direito a decidir quando e em termos queremos sair deste filme.
E creio que o continuo a ser. Pelo menos no que a mim respeita. Mas temo estar a cair numa tremenda hipocrisia e a não conseguir defender para os outros aquele mesmo direito que invoco para mim. Não em relação a quaisquer “outros”, entenda-se. Para a esmagadora maioria dos milhares de milhões de cidadãos do planeta mantenho a minha tese primeira. Mas dentro desses milhares de milhões há alguns centenas de pessoas de quem gosto. E dentro dessas centenas há dois punhados deles (literalmente, pois o número cabe nos dedos das duas mãos) de que gosto muito. Que amo, no sentido em que se amam as pessoas que são muito especiais para nós, o que no meu caso inclui pais, (irmãos não tenho), meia-laranja, e alguns outros que me são imensamente próximos, partilhemos algum ADN ou não.
Teoricamente defendo para esta dezena de pessoas exactamente o mesmo direito. Mais: defendo-o até com maior vigor, porque a última coisa que lhes desejo é qualquer espécie de sofrimento, e tenho para mim que há modalidades de existência das quais desapareceu todo a réstia de dignidade, de modo que o qualificativo de vida só se lhes aplica em sentido biológico.
Mas, na prática, que faria eu se uma dessas pessoas estivesse no hospital e pedisse para morrer, mesmo sabendo que o seu sofrimento vai para além do que um ser humano deveria suportar? Que faria eu se assinasse ali na minha frente uma ordem de não reanimação, mesmo sabendo que a possibilidade de vida que a espera não difere da do mero vegetal?
Se um dia uma destas situações se me deparar, serei suficientemente forte e corajosa para os deixar ir?
Não me recordo de sentir medo da morte. Mas aqui não se trata de uma questão de coragem. Será mais bem tolice ou desprendimento pela vida terrena. Os meus receios prendem-se todos com outros aspectos que caminham junto à morte. Temo a forma de morrer, porque a minha mínima, minimissima, capacidade de aguentar a dor almeja por um fim rápido, sereno e, na medida do possível, indolor. Mas temo sobretudo a perda, a possibilidade de que as pessoas de quem mais gosto morram antes de mim.
Quando era pequenina e não usava saltos altos lembro-me de meramente pensar nesta hipotética possibilidade e ficar logo com o coração a bater tanto a ponto de ter que esconder a cabeça debaixo da almofada, atormentada que estava com esse perigo. De modo que este meu desejo de partir antes daqueles de quem mais gosto não tem nada a ver com altruísmo, ou bravura, ou qualquer sentimento nobre. É tudo uma questão de cobardia e de incapacidade de lidar com a perda. Não suporto deixar as pessoas de quem gosto.
Por alguma boa vontade das forças cósmicas fui até ao momento poupada à morte daqueles que verdadeiramente me são próximos. Não sei o que isso é, e sofro com o mero pensamento de que um dia, eventualmente, saberei. Mas noutros termos e de outras formas já perdi pelos caminhos da vida pessoas que me eram muito especiais. E se há coisa que aprendi é que não lido nada bem com isso. Ninguém lida, é certo. Mas eu, dramática e melodramática como sou, levo as coisas mais a peito, e deixo-me cair tão fundo que chego a pensar se chegarei alguma manhã à superfície.
Voltando à pergunta inicial: que faria eu perante a morte eminente e, mais do que isso, desejada e solicitada, por uma dessas pessoas especiais? Atingirei aquela abnegação que lhes permitirá ir em paz?
Em bom rigor, não há nada que eu, ou qualquer um de nós, possa fazer. Mesmo não se legitimando o testamento vital, as recusas de tratamento são autorizadas por lei, que inclusivamente eleva a ilícito criminal o comportamento do médico que actua contra a recusa expressa do paciente. E eu aplaudo este regime. Pelo menos quando me toca a mim. Porque quanto tocar àqueles que amo… acredito que não serei o suficientemente forte e congruente comigo própria para o aceitar passivamente.
Não, não creio que te vá deixar ir assim. Gostava de ser essa “bigger person”, mas não sou. Desculpa.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Quando for crescida quero ser como tu


Quando alguém teve a tonta ideia de perguntar à minha priminha de 4 anos se já tinha namorado (quem diabo se lembra se fazer esta pergunta a gentinha que ainda anda no jardim-escola? Depois espantam-se que apareçam grávidas com 16 anos!), esperando certamente que ela respondesse que é o Bernardo ou o Afonso (já repararam que todas as “novas crianças” foram baptizadas com “nada novos nomes”?), ela, muito espevitada respondeu. “Não tenho namorado. Não quero ter. Quero ser como a prima Vera”.
Ora, é óbvio que uma parte de mim fica lisonjeada que a minha priminha me escolha a mim como role model. Podia ter escolhido a Marie Curie, a Margaret Thatcher, ou, num delírio de loucura, a Rhianna, mas em vez disso… escolheu-me a mim. Pior ainda, podia querer ser como uma boneca oxigenada e anoréxica, fisicamente desproporcionada, que tem como bicho de estimação uma espécie de caniche e como outro bicho de estimação um boneco totalmente gay. Mas a minha priminha recusou todos os estereótipos sobre beleza barbierianos e escolheu-me a mim, o que é digno de nota,
O meu problema é o motivo pelo qual fui eleita. Não foi pelos dotes de bailarina, nem pelo empenho com que me dedico a tese que está prestes a sugar qualquer sopro de divertimento que ainda existe em mim. Não foi porque sou convidada para conferências ou porque faço o melhor bolo de chocolate do mundo. Foi porque, ao que parece, sou uma encalhada.
Este episódio fez-me recordar as minhas aspirações de menina, quando também eu aspirava a ser alguém parecido às pessoas de carne e osso que povoavam a minha vida real. No plano irreal quis ser muita coisa, desde astronauta a detective. Digamos que neste aspecto a minha imaginação não foi muito para além da de qualquer criança de 6 anos. Mas em termos de pessoas efectivamente viventes a minha idolatria dirigia-se inteirinha a uma amiga da minha mãe, da qual mal me recordo, excepto no que respeita a estas três notas particulares: era enfermeira, conduzia um mini e fumava. Por isso, quando eu media pouco mais de meio metro, queria ser enfermeira, conduzir um mini e fumar. Não me perguntem porque raio as minhas aspirações se ficavam por tão baixa fasquia. Faço notar que acho sobejamente estranha esta minha fixação: primeiro, nesses tempos idos não tinha a mínima inclinação para a medicina, e ainda hoje me vejo mais como uma diva neurocirurgiã do que como enfermeira boazinha; segundo, sou uma daquelas miúdas que gosta de carros grandes (os freudianos que divaguem à vontade); terceiro, não fumo nem nunca fumei, e embora não considere esse hábito propriamente repugnante continuo a preferir meter a minha língua numa boca onde não tenha entrado cigarro. Mas tenho cá para mim que naqueles tempos – finais dos setenta, inícios dos oitenta – e naquele lugar – uma aldeia perdida no meio do Alentejo – provavelmente aquela era a mulher mais emancipada que eu conhecia. Por isso eu queria ser como ela. Ah, e uma nota digna de nota: tanto quanto me recordo essa wild child era solteira. Na minha memória não existem vestígios de qualquer marido da dita, de modo que se era casada nunca disso tive conhecimento e aparecia aos meus adulatórios olhitos como uma devoradora de homens.
Mas isto levanta a seguinte questão: que sociedade é esta a nossa onde as gerações do futuro almejam ser mulheres sozinhas? Porque é que a minha priminha não quer ser como as outras primas, esposas e mães felizes? Porque é que eu apareço aos seus inocentes olhos como a melhor coisa que se pode ser no mundo, tal como a dita senhora enfermeira fumadora, e quiçá promíscua, me aparecia a mim como o ex libris do women power?
Emergem aqui duas premissas essenciais, mais altamente discutíveis:
a) As mulheres emancipadas e modernas, seja lá o que isso for, são as que estão sozinhas;
b) As referidas na alínea anterior são mais felizes do que todas as outras e por isso devem ser elas o exemplo a seguir.
Preocupa-me sumamente que estes sejam os modelos de condutas que oferecemos às gerações do amanhã, e que lhe estejamos a vender o mito de que o protótipo ideal de mulher é esta criatura obcecada consigo própria, devotada ao trabalho e ao sucesso, demasiado insuportável para que alguém a ature, egocêntrica, em suma, uma cabra terrível.
E agora que olho para trás não posso deixar de pensar que provavelmente, ao invés da enfermeira fumegante, eu deveria era ter desejado ser como a minha mamã.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Lisboa em estado de NATO


Ele há o estado de sítio. Ele há o estado de emergência. E agora o bom povo português criou o estado de NATO. Entenda-se por esta nova figura o estado em que depois de um alarme brutal, como se uma bomba atómica se dirigisse ao coração da nação, afinal o que acontece é… nada!!! Pura, simplesmente e exclusivamente, nada.
No rescaldo da cimeira da NATO pouco há a dizer. Ou melhor, dir-se-ia que a montanha pariu um rato, sendo a montanha o nosso governo e o rato os escassos manifestantes que num sábado solarengo se meteram a caminho do Marquês em luta contra… contra o quê exactamente? É que eu ouvi gente a queixar-se de tudo: do capitalismo, da NATO, da morte de civis inocentes, da opressão estadual, de todos os pontos atrás referidos, de nenhum deles mas de outra coisa qualquer… Enfim, um autêntico menu de queixas, tantas, que até eu pensei em juntar-me em voz de protesto contra o preço dos sapatos de pele e contra homens giros que são gays.
E não pensem que trato o episódio com ligeireza, porque na verdade, ao ouvir as entrevistas que passaram na televisão, pensei para com os meus botões que a minha lista de pretextos é, afinal, mais congruente e sólida do que a dos entrevistados. Ou os senhores jornalistas das várias cadeias de televisão optaram essencialmente por passar no horário nobre as profundas divagações de quem não faz a puta ideia do que ali está a fazer mas vai pela arruaça e a possibilidade de sangue, ou então, basicamente, quem apareceu ao chamamento não fazia mesmo a puta ideia do que ali se estava a passar.
E por falar em sangue, aproveito para protestar contra expectativas goradas. Pois não pode o governo andar por aí a anunciar com pompa e circunstancia que se avizinham grandes perigos, e a lançar soldadinhos do corpo de intervenção (soldadinhos como quem diz… que de todo eu não quero arrufos com um daqueles senhores) em cada esquina, com ar de GI Joe e bastão à mão, cancelando transportes públicos e circulação na capital, para depois ser só mais um dia como os outros. O povo espera mais. Uma bomba, um atentado, um carrito a arder, uma ameaça de bomba que seja. Agora, um mero desfile de camaradas pela Avenida da Liberdade, isso é que não. Em abono da verdade diga-se que a culpa governamental não morre sozinha. Afinal, os manifestantes tinham-nos habituado a outro tipo de espectáculo nos anos antecedentes. Até nisto se vê como somos coitadinhos. Nem uma manifestação violenta, assim como deve ser, podemos dar ao mundo. Bem louvo aqui os esforços da nossa polícia em tornar a coisa um bocadinho mais digna, algemando os miúdos e deitando-os no chão. Reconheço também que o cordão policial teve o quê de dramático, de modo que um bem-haja às nossas forças de segurança que, pelo menos, deram o seu melhor para igualar a nossa cimeira às dos países civilizados. E, sobretudo, para não darmos por mal empregue todo o dinheiro que pagamos em impostos. É que eu só aceito que o meu salário me seja reduzido se for para pagar a conta da minha segurança contra ataques de teenagers com borbulhas e cheiro a ganza. Felizmente os tais veículos blindados comprados expressamente para a ocasião não chegaram a chegar. Senão seria como usar batom Channel para ir comprar toucinho ao talho. Ou, e ainda numa analogia porcina, como deitar pérolas a porcos.
É claro que nem todos os manifestantes eram gente mal informada. É certo que grande parte dos bem-informados foram deixados à fronteira, a beber um chocolate quente e a comer uns churros. Mas em abono da verdade ouvi na televisão algumas opiniões de manifestantes que me pareceram relativamente consistentes. E lamento que essas boas intenções tenham sido diminuídas pela junção à manifestação de gente com a qual não terão certamente a mínima afinidade. Ainda estou para saber o que é um pacifista tem em comum com um neo-nazi, e compreendo a frustração das pessoas de bem que naquele dia se deram ao trabalho de sair de suas casas para depois se verem confundidas com um grupo de descabelados que certamente nunca leu o Mein Kampft mas acha piada a ser do contra. Do contra do que seja.
Creio que no final do dia a nota que me ficou na memória foi ver as principais marcas da capital a esconder os seus símbolos demoníacos (leia-se, capitalistas) com panos e tapumes de madeira. A Prada até se deu ao trabalho de contratar seguranças privados, não fosse o diabo tecê-las e os manifestantes confundirem uma daquelas deliciosas malinhas de verniz preto com uma arma de destruição massiva, daquelas que as tropas da NATO usam. Pelo menos sempre ajudam à redução do desemprego, de modo que três vivas para a Prada. Mas vou mais longe até e dou três vivas ao capitalismo em geral. Porque não percebo em que medida a contestação contra a guerra se relaciona com a contestação contra o sistema de mercado livre. Onde raio foram encontrar essa ligação entre socialismo/comunismo e sistemas pacíficos/ repulsa da opressão pela força? Na Coreia do Norte? Ou em Cuba? Talvez na ex-URSS, com Estaline à cabeça. Não considero o capitalismo o sistema perfeito, mas continua a ser o meu preferido de entre os sistemas imperfeitos. Porque um modelo de regulação onde a iniciativa privada não pudesse prosperar e a economia fosse incapaz de crescer livremente e sem peias estaduais (e qualquer semelhança entre esta descrição e o actual estado de coisas em Portugal é mera coincidência) não me serve. Já para não mencionar a enorme dificuldade em que eu teria em encontrar sapatinhos numa economia fechada…
Em jeito de balanço final que ganhámos nós com a cimeira? Bem, cancelaram o concerto do Arcade Fire, mas como o da Shakira se manteve ficou ela por ela. Ficámos a saber que a maior divida que o governo norte-americano tem para com o bom povo português se relaciona com um cão de água. Fomos esclarecidos que o senhor licenciado em engenharia tencionar ainda cá estar (enfim, lá estar, nos Estates) para ao ano, mas que não mete as mãos no fogo por um dos seus melhores ministros. Compreendemos que nem todos somos iguais perante as fronteiras, e que está bem deixar entrar traficantes de droga, mas pacifistas não. Eu, sobretudo, fiquei a saber que uma botinha Prada pode ser usada como lançador de morteiros. De modo que dou por bem empregues os 5 milhões que o filósofo gastou com esta brincadeira.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Excesso de bagagem


É inevitável: cada vez que euzinha vai voar passa as horas que antecedem a saída com grandes estudos científicos para determinar aquilo que é rigorosamente indispensável levar na mala (sapatos), e aquilo que é supérfluo (pasta de dentes, que pode ser comprada em qualquer chafarica). Mas mesmo assim não me livro de chegar ao check in e pedinchar por quilos extras, mostrar decote se tiver um homem a pesar a mala, apelar à solidariedade de género se tiver uma mulher, enfim, no amor, na guerra e nos chek in’s vale tudo. E de quando em vez (uaua!!!) acabo mesmo por pagar excesso de bagagem, o custo acrescido de quem não viaja leve na vida.
Essa sou eu. Nem leve nas malas nem leve no passado.
Também nas minhas relações carrego excesso de bagagem. Não porque tenha tido muitos namorados. Enfim, tive q.b. Digamos que não morro estúpida nem perita no tema. O problema são as memórias, as comparações, as mágoas, os traumas.
Creio que ninguém espera que uma pessoa nos seus trintas e tal seja virgem nesta matéria. Nem de sexo nem de coração. Já não alimentamos aquela expectativa tonta de sermos os primeiros na vida de alguém. Somos os segundos, os décimos terceiros, os quadragésimos quartos, sem que isso nos incomode porque nesta altura do campeonato já concluímos que o importante é sermos os mais importantes da vida de alguém e não, simplesmente, os primeiros. Só mesmo aos 18 anos é que queremos desbravar mares nunca antes navegados e amar criaturas nunca antes amadas.
Eu, pela minha parte, desconfio que ficaria muito desconfortável com alguém que nunca tivesse estado apaixonado. Como diabo saberia eu que ele gostava mesmo de mim? Reformulo: como diabo saberia ele que gostava mesmo de mim, se nunca tivesse gostado mesmo de alguém? Qual o seu ponto de comparação? Acho que passaria o resto da vida a pensar que ele tinha ficado comigo porque não conhecia outra coisa. E provavelmente ele também pensaria assim um dia. Por isso almejo para mim alguém que tenha um passado. Que tenha amado, desamado, sofrido. Que, parafraseando o grande Martinho da Vila, tenha tido muitas mulheres, de toda as cores, e que tenha parado em mim porque, depois de conhecer este mundo e o outro, achou que eu sou o melhor que qualquer mundo lhe pode dar.
De modo que eu quero alguém com bagagem. Mas uma bagagem que ainda respeite o limite de peso emocionalmente estipulado. Namorados com filhos e ex-mulheres já são demais para mim. Namorados com histórias não terminadas são demais para mim. Namorados muito amiguinhos das ex-namoradas e que continuem a dar-lhe abrigo em sua casa são demais para mim. Namorados traumatizados com relações anteriores são demais para mim. Namorados que quando bebem uns copos me comecem a falar da outra são demais para mim. Namorados que controlam todos os meus passos porque vivem na insegurança de uma traição antiga são demais para mim.
Serei eu intransigente no peso? Talvez. Mas mais vale barrar a mala logo no check in do que no momento de entrar no avião.
Mas, como todos temos telhados de vidro, eu tenho um telhado de cristal. E por isso, quem me apanhar a mim, cai-lhe no colo uma mala com o peso de todas as tristezas do universo. Uma mala estragada, de fecho avariado, já rota e, possivelmente, com mercadoria ilegal.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Até à próxima vez que nos virmos


Estou tão feliz por te encontrar de novo! Caramba, parece que foi ontem mesmo que nos vimos e já passaram anos. Já te disse que penso em ti muitas vezes? Que penso nas coisas que fizemos juntas, nos momentos que partilhámos? Às vezes começo a rir-me assim, do nada, e penso em ti. É como se o tempo não se tivesse interposto entre nós.

Há amigos assim. Conhecemo-los num momento em que o universo parece ter reunido todas as suas forças para propiciar o encontro. Um daqueles encontros casuais numa paragem do autocarro, num congresso, na fila para o quarto de banho. Começamos a conversar, primeiro quase a medo, não fosse eu o bicho-do-mato que sou, e de repente eis-nos ali a tagarelas como velhos amigos, como amigos de infância.

Depois vai cada um para seu lado, viver as suas vidas, namora e desamora, casa e descasa, sai de um emprego e vai para outro, tem filhos, fica mais velho, mas no dia em que nos encontramos novamente é como se tivesse estado juntos todos o este tempo. Não há silêncios, nem vergonhas, só muita coisa para contar. É como se a sua vida fosse um bocadinho minha, e as suas dores um pouquinho as minhas também.

Conheci a minha amiga Maria numa paragem de autocarro em Veneza. Vejo-a chegar ao longe, arrastando desesperadamente uma mala maior que o seu 1,60m, e pergunta-me naquele inglês macarrónica que desmascara logo um grego, se sabia para onde ia o autocarro. Depois de algumas respostas monossilábicas da minha parte lá chegámos à conclusão de que, afinal, íamos para o mesmo sítio, participar no mesmo evento. E ali mesmo, no meio da rua, começámos as duas aos pulinhos, a modos que descobrindo que assim como existe o amor à primeira vista também existe a amizade à primeira vista.
Durante o resto da semana eu e o meu meio-limão (foi assim que nos baptizámos) fomos inseparáveis. Talvez o facto de sermos as únicas latinas do grupo tenha contribuído para estreitar o laço, ou porque ambas as nossas vidas eram estranhas qb, ou talvez porque, simplesmente, it was meant to be.
Muitas lágrimas de despedida no aeroporto, muitas horas no msn, e passados uns meses eis que a minha Maria arranja forma de me convidar para um projecto, como modo de encobrir uma oportunidade de estarmos juntas.
Ora, não era aquela a melhor altura da minha existência. A bem dizer, tinha o coração partido, a vida feita em cacos e por dentro estava vazia de tudo. A Maria também não estava melhor. Pois que grega com juízo se lembra de arranjar um namorado turco? Bem sei que podia ter sido um contributo importante para a paz mundial mas, enfim… a coisa estava condenada ao insucesso. E lá estávamos as duas, algures numa cidadezinha irlandesa perdida no meio da terra de ninguém, com um tempo merdoso capaz de deprimir o mais optimista. E se há coisa que não esquecerei foi o dia em que ela me pediu para me deitar ao seu lado, olhos inchados pelas lágrimas, me agarrou na mão e disse, naquele inglês lindo que aprendi a adorar: “Estou tão feliz que estejas aqui agora, Que seria de mim se estivesse sozinha?”. Háverá coisas bonitas que os amigos dizem uns aos outros, mas esta…. Autch!!
E quando a história de amor entre a Grécia e a Turquia chegou ao final mais final que pode haver, e a Maria decidiu deitar fora toda e qualquer memória do “falecido emocional”, pegou num lindo par de sapatinhos violeta, de verniz, com um laço, como sapatos das princesas dos contos de fadas, e enviou-mos pelo correio. Sim, os benditos voaram da Irlanda para Portugal, como se fossem um órgão para transplante. Disse que eu era a única pessoa que ela gostaria que os usasse. E sempre que os calço – as cabeças que se viram para os ver! – me recordo do tudo porque passámos juntas, Porque aquele tudo já é muito: muitas lágrimas, muitas gargalhadas, mas muita esperança também.

Com a Maria Teresa a história repete-se: vi-a a primeira vez num congresso e não conseguia deixar de olhar para aquela mulher linda, fantástica, brilhante, a estrela da festa e só pensava no emocionante que deveria ser ter uma amiga assim.
Claro que vivendo ela noutro continente parecia difícil que a nossa amizade fosse para além de encontros casuais em congressos da especialidade, mas a vida tem destas coisas e acabámos por volta e meia “chocar” uma com a outra. E sabem de uma coisa? Cada vez que nos vemos é como se nunca nos tivéssemos separado.
As duas estendidas no sofá, a contar histórias, trocar sombras e batons, experimentar sapatos, como velhas amigas de infância. Nunca há silêncios. Parecemos gralhas. Invadimos tudo com a nossa energia. Os taxistas passam o tempo a olhar pelo espelho e a rir. Les enfants terribles, uma espécie de arrastão de hormonas femininas, de máquina em punho a querer fotografias com tudo e com todos, como se precisámos desesperadamente de mais memórias que sobrevivam até ao dia em que nos encontremos de novo.

Fui abençoada com a sorte de ter amigos (literalmente) em todos os continentes. Claro está que não os encontro ao virar da esquina e por vezes passam anos que não os abraço. Felizmente as novas tecnologias vieram permitir manter estas tele-amizades. Mas o surpreendente é que cada vez que nos encontramos é como se nunca nos tivéssemos separado. Nunca sei quando os verei de novo, ou sequer se os verei mais. Por isso aprecio tanto cada momento e nunca lhes digo verdadeiramente adeus, mas apenas que se cuidem até à próxima vez que nos virmos.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

EASY RIDER


Embora a febre motard me corra na família nunca padeci dessa doença. Até dispensei a acelera que muitos coleguinhas tinham no liceu. O maior fascínio das motas para mim residia – e nem este era particularmente perturbador – na ideia de um tipo de óculos Ray Ban a conduzir a dita por uma estrada deserta, muito ao estilo do Dylan de Beverly Hills 90210, o mito da minha juventude.
Posso até confidenciar que olhava para os tipos das motos com certa…
Desconfiança? Enfim, é sabido que os idiotas que gostar de circular a 200km/h provocam acidentes seríssimos só pelo prazer de sentir a adrenalina. Ora, eu acho que cada um tem o direito de se matar como queira (daí ser firme defensora de eutanásia e dos testamentos em vida), não tem é o direito de andar a matar os outros e destruir familiar.
Paternalismo? Convenhamos que o ridículo da vestimenta de cabedal, com o lencito à Xutos, barbas a roçar a cintura e um ar, no mínimo, avesso à limpeza, me despertava certo paternalismo.
Curiosidade? Pois se a coisa tem tantos adeptos já desconfiava que não havia de ser má de todo e que algum encanto se escondia por entre km de alcatrão e terra batida.
Mas como de tudo nos calha na vida este fim-de-semana bateu-me à porta o convite para um passeio de mota. Mota… quer dizer, nem sei ao certo como lhe chamar. Para mim aquilo parecia um tanque de guerra de duas rodas. Aceitei à falta de melhor programa e aliciada pela companhia. Mas a medo. Muito medo. Na noite anterior sempre que fechava os olhos me imaginava contra os rails de uma auto-estrada, desmembrada ou, no mínimo, decapitada. Ora, se esse não foi um fim simpático para a Maria Antonieta, não vejo porque o deva ser para mim. Mas como o objectivo é defrontarmos os nossos medos lá fui eu fazer de pendura (“uma miúda das motas”) neste Domingo de Agosto
Primeiro desafio: escolher a vestimenta apropriada. Porque não tendo sequer um blusão de protecção, colocava-se a questão de saber como me proteger do frio e de algum potencial embate. Antes de mais, exclusão de roupas que se pudessem enredar na mota ou que subissem de tal modo ao sabor do vento e da velocidade que os restantes motociclistas e automobilistas vislumbrassem a rendinha da minha roupa interior.
Segundo desafio: enfiar a minha gigante cabeça no capacete. É que além de uma juba de leão (só eu sei, porque não fico em casa, lalalalalala) agraciou-me Deus (ou o demónio) com um cérebro monumental, de modo que nem me cabe na cabeça (tenho para mim que a principal razão do meu cabeção é mesmo massa cinzenta e não puro vácuo). Depois de prender a cabeça lá dentro, de tal forma que seria precisos 10 homens a puxar-me pelo pescoço para me “desenfiar” de novo, dei por vi a divagar sobre o bonito estado dos meus caracóis quando tirasse a carapuça. Mas decidi que iria adoptar um movimento à “anuncio de champô”, de modo que mal me “desencapacetei” eis-me a abanar a cabeça para todo o lado, ao melhor estilo da Pantene.
Terceiro desafio: subir para a mota. Porque, como disse, aquilo era mais bem um touro. Um bisonte. Uma coisa grande. Equilíbrio. Não caias na frente desta gente toda por favor. Agarrei-me como pude ao condutor, com unhas, dentes, e que mais tivesse eu para me manter firme, e levantei a perna. De pouco me serviu a minha afamada flexibilidade, porque acabei por dar com a biqueira da bota na mala da mota. Mas finalmente sentei o rabiosque e pensei que aquele fora o meu movimento mais arriscando. Ufa!!!!... Mas quando a coisa se pôs em movimento vi o quão crasso fora o meu erro de julgamento.
Quarto desafio: manter-se em cima da mota. É que aquilo anda. E faz curvas. E inclina-se. E passa entre os carros, que nem sempre nos vêm e muito menos gostar de se sentir ultrapassados por gente de duas rodas. E como, segundo parece, o condutor sente alguma dificuldade em conduzir comigo abraçada ao seu troco como se fora um macaquinho agarrado à mãe, não me restou outra saída senão os apoios laterais. E lá fui, hirta como um pau de vassoura. Depois dos primeiros km deixei de lhe dar “capacetadas” sempre que ele abrandava, e ao fim do dia até já, pasme-se, me atrevi a libertar as mãos e coçar o pescoço.
Balanço final: ainda tenho muito para aprender, mas a Elisabete Jacinto que sou cuide. Hoje nasceu uma motard. Esy rider, easy going.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O gene da felicidade


Há quem toque Chopin. Há quem dê saltos acrobáticos no ar. Há quem cozinhe soufflé sem que fique amarrotado no fundo da forma. E há quem faça as pessoas felizes. Refino o meu pensamento: há quem consiga fazer uma pessoa, uma em particular, muito feliz.
Isto de fazer alguém feliz não é para todos. É um dom, um talento, uma graça, uma bênção, sei lá. Tornando a afirmação mais científica, direi que é uma benesse do nosso ADN que permite a alguns fazer os outros felizes.
Bem sei que numa primeira abordagem parece coisa simples. Se lhe fizermos as vontades ela, a outra pessoa digo, será feliz. Se apreciarmos as coisas de que ela gosta, se nos interessarmos pela sua vida, se a tratarmos com carinho e respeito, se a fizermos sentir importante e desejada… porque não há-de ela ser feliz? Bem… porque as relações humanas não são uma fórmula química, de modo que não basta juntar os elementos correctos num tubo de ensaio para descobrir o elixir da felicidade.
Não vos aconteceu já pensarem que estão a fazer tudo bem, ou melhor, saberem que estão a fazer tudo bem, e mesmo assim não conseguirem chegar lá? Amam o outro com paixão e devoção, fazem-no sentir a última bolacha do pacote, tentam tornar-lhe a vida mais fácil, mais prazenteira, mas mesmo assim aquela irritante vozinha interior continua a dizer-vos que fracassaram enormemente. E o pior é que a bendita da vozinha tem quase sempre razão (neste aspecto, é como as mães), de modo que um dia o “Ele” ou a “Ela” se viram para vocês e dizem: “Tu não me fazes feliz”. E nós até já sabíamos. Mas quando é dito assim, em voz alta, íris na íris, simplesmente, torna-se mais real. E é uma dor imensa. Como dor de dentes, dor menstrual e dor de ouvidos tudo junto, numa mesma dor interior.
Este “falhanço felicitário” não resulta do muito ou pouco que se goste do outro. Mas resulta sem dúvida do muito ou pouco que o outro gosta de nós. A dura verdade é esta: todos somos felizes com as pessoas de quem gostamos. É cruel, bem sei, mas ninguém disse que as relações humanas são para meninos. Quando gostamos de alguém podemos ser ignorados, menosprezados, e todas as coisas negativas terminados em “ados” e, mesmo assim, continuamos… apaixonados. Ados. Existe ali uma qualquer espécie de felicidade masoquista por força da qual basta a pessoa existir e estar ali ao nosso lado para nos fazer felizes. Pelo contrário, quantas vezes não tivemos já verdadeiros anjos nas nossas vidas, que se dedicaram a nós de alma e auréola, mas com quem nunca fomos verdadeiramente felizes?
Dito isto, concluo que fazer o outro feliz passa muito pelo quanto conseguimos cativá-lo e fazer com que se afeiçoe a nós. Não é tanto a forma como o tratamos, mas a forma como o apaixonamos. E ao que parece essa é uma questão de feromonas, de áureas, de coisas inexplicáveis tipo Poltergeists e zombies…. Caramba, será o amor um filme de terror?
Moral da história: alguns de nós que vivemos neste planeta não conseguimos ser gostados como manda a lei e, por conseguinte, sofremos de uma inaptidão crónica para fazer o outro feliz. Esta é uma doença grave e incurável, que acarreta consigo muito sofrimento, e que conduz a uma morte lenta e atroz. Não se trata de uma incapacidade que possa ser suprida com estudo e investigação. É que eu ainda pensei em procurar um explicador, ou uma daquelas formações pós-laborais, ou um curso por correspondência que fosse, para ver se consigo aprender a fazer alguém feliz. Mas estou em crer que isto é como uma arte: posso treinar a vida toda mas se não tiver em mim a aptidão natural para tal nunca serei um Mozart da felicidade. Sendo uma falha genética só me resta esperar que os novos avanços na terapia génica e no genoma humano descubram uma maldita forma de inserir em mim o gene da felicidade.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

QUANDO A VIDA NOS CORRER BEM


Há dias, em conversa com um bom amigo, ele disse uma coisa que a mim e à minha mente distorcida, pareceu realmente assombrosa:
“Se a vida me correr bem, acredito que possamos ficar juntos”.
Referia-se à namorada, uma alminha perdida absolutamente apaixonada por ele, que almejava a utópica (será?) fantasia de envelhecerem lado a lado.
E eu pensei que este homem, que é um dos meus melhores amigos, uma das pessoas que mais admito, mais inteligente que conheço, mais isto e mais aquilo, na verdade, e neste particular, não consegue ver mais além do que a sua vista alcança. Como diria alguém, está preso na alegoria da caverna.
É que as pessoas não decidem partilhar os seus destinos quando a vida lhes corre bem mas, bem pelo contrário, a vida corre-lhes bem quando partilham os seus destinos.
Como é que alguém pode pensar que a sua vida a dois está dependente de um bom emprego, DE um bom salário ao fim do mês, da estabilidade e do conforto? Se assim fosse, sobretudo em momentos de crise aguda como esta, cada um de nós arrumaria as suas tralhas e montaria vida sozinho, à espera de melhores dias financeiros e, consequentemente, amorosos.
A vida é tudo menos simples. Está cheia de problemas, de revés, de retrocessos, de dramas, de contas por pagar, de despedimentos, de empréstimos bancários a assaltar-nos as poupanças, de procuras de empregos, de mortes, de doenças, de discussões… should I go on? O que torna esses dias menos felizes um bocadinho mais felizes é precisamente saber que ao final do dia chegamos a casa e temos lá alguém que não se importa com o carro que conduzimos ou o dinheiro que temos na carteira, e que só quer que cheguemos a casa depressa para se enroscar em nós e nos fazer sentir melhor. Quando isso acontece a vida corre-nos bem.
A minha vida ultimamente tem sofrido muitos desaires. E por vezes sinto-me vir abaixo. Há momentos em que apetece desistir, fechar-nos em casa e não sair mais até que o mundo acabe. Mas, apesar de tudo, acho que a vida me corre bem.
Não tenho a menor dúvida de que este meu amigo vai ter um futuro brilhante. É uma pessoa muito talentosa, batalhadora, corajosa, bem-formada. Daqui a uns anos vai viver numa casa com um ecrã gigante, conduzir uma mota ainda maior, viajar para onde quiser, e, mais importante do que isso, vai ter o tal emprego de sonho, do seu sonho de menino. Mas se porventura essas coisas não acontecerem agora mesmo, a brevíssimo prazo, ele a acredita que não pode partilhar com mais ninguém o pouco que tem, até porque assim se concentra mais nos seus objectivos, sem se distrair nem se afeiçoar. Por isso pode suceder que nessa altura, quando finalmente viva o seu sonho, e a vida “lhe corra bem”, não tenha ninguém à sua espera ao chegar a casa. Ou melhor, poderá ter as pessoas que lhe der na realíssima gana, que na verdade as mulheres gostam de homens bem-sucedidos, mas nenhuma estará lá por ele, e sim pela vida que ele tem. Ele acredita que não sentirá falta disso. Porque a única coisa que sente falta é do seu sonho.
Quase gostava que estivesse correcto. Para bem dele, gostava que tivesse razão. Mas tenho para mim que nesses momentos gloriosos que encherão os seus anos vindouros vai haver dias em que chegue a casa e gostaria de ter alguém que lhe fizesse uma festa na cabeça, que perguntasse como foi o dia. Alguém que lhe ligue a perguntar porque é que ainda não chegou a casa, se está tudo bem, se vai querer peixe ou carne ao jantar. Que mais não seja alguém que sinta a sua falta quando não esteja, que chora por ele, que sofra por ele.
Meu amigo, as pessoas não ficam juntas quando a vida lhes corre bem. A vida é que lhes corre bem quando estão juntas.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Aviões, aeroportos e (já agora) pilotos


Detesto viajar.
Reformulo: tenho uma verdadeira paixão por ir a sítios, mas também um verdadeiro horror em chegar até eles.
Para mim o meio de locomoção adequado seria mesmo a pé (levando nos pés sabrinas e os saltos altos de Cinderela num saquinho de plástico do Continente, claro está), não fosse o facto de os meus (mínimos) 20kg de bagagem dificultarem a coisa se não tiver um carrinho de mão comigo.
Senão vejamos: a bicicleta faz-me doer o rabiosque; de carro enjoo a ponto de desejar morrer naquele mesmo momento (passo o resto do dia indisposta e, pior que tudo, perco um bocadinho o apetite e deixo de comer tudo o que me aparece à frente); até de comboio enjoo; nos barcos também tenho tradição de enjoar (em suma, sou uma enjoada), e acho os aviões um tédio.
Concentremo-nos nos aviões, porque de facto as verdadeiras viagens são aquelas que nos separam do destino por milhares de quilómetros. Quaisquer 200 quilómetros são, quando muito, uma volta ao bilhar grande. Enquanto não se anda no ar (o corpo todo, não apenas a cabeça) não se viaja, no sentido próprio da coisa. O problema, meus caros, é que eu acho um tédio andar no ar.
Não é medo, é tédio mesmo. Bom, confesso que sempre que me recordo do primeiro episódio do Lost fico com algum receio de entrar no bicho que voa, mas se o meu destino fosse ir parar numa paradisíaca ilha com o Sawyer… posso imaginar fins piores (e ficamos por aqui…)!
Mas, como dizia, não é medo. É um profundo tédio por ir ali sentada. Pelas horas antecedentes que temos que aguentar no aeroporto. Pela ginástica acrobática que faço ao tentar meter-me a mim e à minha bagagem na casa de banho do aeroporto quando calha a não me aguentar antes de despachar as malas, e pergunto para mim mesma se alguém já se terá lembrado de fazer cubículos maiores. Pela angústia do check-in até saber se levo ou não excesso de peso (e, já agora, as pessoas mais gordinhas não deveriam também pagar os quilos a mais? Afinal, o que uns levam em banhoca podia eu levar em sapatinhos. Enfim… é só um pensamento…). Pela passagem no controlo de segurança, onde tenho que deixar os meus pertences por ali à solta enquanto tiro o PC da mochila, e depois é certo e sabido que alguma coisa em mim há-de apitar (entre os múltiplos piercings e o metal que tenho nos dentes aceitam-se apostas), e não é que isso me importe se fosse um senhor alto e jeitosos a tocar-me delicadamente com as suas mãos gigantes, mas não, é sempre uma tipa balofa a apalpar-me e eu que não estou para cenas lésbicas ali. Pelo deambular pelos corredores torcendo-me toda para não rastejar a minha sede de compras no duty free. Pela entrada para ao avião, com aqueles cromos que levam eternidades a arrumar as coisas e a entrar para o seu lugar. Pela estúpida vontade que me dá de fazer xixi antes de ser permitido usar os lavabos. Pela espera até que sirvam a primeira refeição, que anseio em perfeita esgana, porque me recuso terminantemente a comer no aeroporto e a pagar 1 euro e meio por um café mal tirados e 4 euros por uma sandes de pão duro e fiambre com gordura, de modo que só como a comida que me dão no avião, até porque também já a paguei e me custou bem cara, e depois calha-me sempre qualquer caca com queijo, e eu que sou alérgica fico ali a olhar para aquilo e pergunto aos senhores empregados que nos servem no ar (rectius, hospedeira e comissário de bordo) se não há mais nada que me possam dispensar, e como tenho tido a sorte de encontrar almas caridosas lá me vão arranjando umas barritas de cereais que tinham reservadas para eles próprios, sendo que nesta altura estar-se-ão a perguntar porque raio não peço eu uma refeição especial, e a isto respondo que fiquei traumatizada com os tomates grelhados ao pequeno almoço que já me têm servido, bem como outras iguarias das refeições especiais, de modo que arrisco a passar meio dia sem comer só para, caso possa deglutinar, comer alguma coisinha menos indecente. Pelo espera até sair do avião, e de novo os cromos que pensam que não está ninguém atrás deles para sair dali. Pelos suores frios que me dão sempre que a minha mala tarda em aparece no tapete rolante, porque afinal já são uma série de malas pedidas e não recomendo passar mais que um dia com a mesma roupa interior. Pela saída (finalmente) do aeroporto, e a busca de um táxi que me leve a whatever place, sabendo de antemão que vou ser enganada no preço.
Em suma, detesto aeroportos e andar de avião.
Dito isto, seria um grande paradoxo se a minha meia laranja viesse a ser um piloto.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Porque é que continuo a acreditar em histórias de amor


Segundo parece (pelo menos assim li no jornal do metro e li na nota de rodapé das noticias da SIC, logo, tem mesmo que ser verdade) a taxa de divórcios está a aumentar exponencialmente. Dizem as estatísticas que um em cada dois casamentos termina em divórcio e que o aconselhamento conjugal é cada vez mais procurado, inclusivamente por namorados.
E a corroborar a faceta científica da coisa eis a melhor prova destes factos: olhar para o lado e ver aquilo que me rodeia. Grande parte dos meus colegas de faculdade e de liceu está sozinho. Não porque nunca tenham encontrado ninguém especial, até porque os anos de procura já não são poucos assim. Mas porque o encontraram e o perderam. Ou foram perdidos por alguém. Os namoros da faculdade terminaram há muito. Relações mais maturas que tenham tido também tiveram fins dolorosos, com caixas a ser empacotadas na divisão de livros, de Cd’s e do restante espólio de uma breve vida juntos. Alguns já vão inclusive no segundo casamento quando eu ainda nem o primeiro tive. Aliás, se há prova cabal de que as histórias de amor já não são o que eram essa prova sou eu. Olhando para trás a minha é um mar de destroços amorosos, fracasso atrás de fracasso. Quase impele a uma dissertação de doutoramento sobre o motivo pelo qual são tão bem sucedida noutros campos e uma nódoa tão grande neste. E em jeito de conclusão, mas a corroborar tudo o que ficou dito, esse maravilhoso mundo do cinema de Hollywood, onde dantes os filmes tinham sempre finais felizes, com casais apaixonados ao por do sol, e hoje filme que se preze e que vença Óscar tem que terminar com uma morte ou uma despedida.
Mas eu, que sou uma tola assumida, continuo a acreditar em mais laranjas, em amor do caixão à cova, em happy endings, em tudo isto acredito com a mesmíssima convicção com que acredito que h+a vida noutros planetas e que D. Sebastião ainda vai regressar um dia. E é isso que me faz passar horas a fio na minha vertente de conselheira sentimental, chorar baba a e ranho nos casamentos, vibrar com os romancezinhos das amigas… sei lá, só me falta vestir as asinhas e disparar setas.
Porque é que as histórias de amor já não duram dezenas de anos? Porque é que já não se celebram bodas de prata? Como é que ficámos todos tão egoístas?
As pessoas discutem. E o mundo não termina por isso. Tentamos acomodar-nos às nossas limitações e às limitações do outro. E por vezes as relações humanas passam por provações, e desentendimentos, e incompatibilidades de feitio, mas é por isso mesmo que somos humanos e não máquinas. E o mais curioso para mim é que estas mesmas pessoas que não conseguem levar a bom termo a sua história de amor, e desistem aos primeiros percalços, são exactamente as mesmas pessoas que demonstram uma incrível tenacidade no seu trabalho, que se caracterizam pela sua ambição, e persistência, e espírito de luta. Mas depois são incapazes de tamanha devoção na sua vida pessoal, não sei se porque se entretanto esgotarão as suas foras noutras baralhas se será porque não acham que mereça o esforço. Once again, é tudo uma questão de prioridades. Ora, se não desistimos de um curso, de um projecto, de um sonho, como raio é que nos passa pela cabeça desistir das pessoas?
É verdade que “simplesmente” gostar não é suficiente. Já acreditei que sim e já descobri que não. As relações exigem esforço, dedicação, persistência, adaptação. E há alturas em que precisamos mesmo de engolir o orgulho, voltar atrás e pedir desculpa. Ou desculpar, o que também não é fácil.
Ainda estou para saber como é que nos convencemos todos que amar era fácil. Que bastava apaixonar-nos e depois seriamos felizes e comeríamos perdizes. Não é fácil, é um projecto a longo prazo que exige muito investimento pessoal.
“It's not always rainbows and butterflies
It's compromise that moves us along…”
Mas por algum motivo espalhou-se esse mito urbano de que all we need is love e que a partir daí seriam tudo rosas e anjos. E enquanto continuarmos a acreditar nisso continuaremos a cair na armadilha e desistir porque não é fácil. O mais laranjas podem ser a pain in the ass mas, em última instância, são quem mais feliz nos faz, e por isso não há esforço que seja demasiado. Mas a nossa geração, a minha geração, não foi educada para outros sacrifícios que não se relacionem com o sucesso profissional. Por isso este nos parece desmedido. Por isso também terminamos a noite bêbados e sozinhos em casa, a ver o Casablanca.
Face a tudo isto, como posso ainda acreditar em histórias de amor? Não sei. Gostava de apresentar aqui dados prementes e incontestáveis, eventualmente demonstráveis com uma fórmula matemática… mas não tenho nada disso. Suponho que continuo a acreditar porque se assim fosse já nem me levantava da cama.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Desculpe, importa-se de repetir?


A história não é original.
Rapaz parte coração a rapariga. Rapariga bate com a cabeça nas paredes durante alguns meses, e no meio da perturbação decide que o único remédio é voltar a apaixonar-se. Mas aí está uma coisa mais fácil de dizer do que fazer. Porém, a força de vontade move montanhas e, pelos vistos, também corações. Um dia a rapariga encontra um rapaz amável e limpinho, e decide que será aquele a sua vítima. E tenta, tenta com todos os poros do seu corpo, criar ali uma paixão, alguma coisa a que se pudesse agarrar. Mas as comparações são inevitáveis, e quase sempre injustas. De modo que o rapaz estava a ser um paliativo, não a cura da doença de coração. Quando ela procurava as palavras apropriadas para virar as costas com alguma graciosidade ele facilita-lhe a vida. Mete o pé na argola de uma forma que ela não podia deixar passar. A rapariga suspira de alívio. Ao princípio. Depois, dá por ela a suspirar por ele. A ausência do rapaz é sentida como uma perda. Dias mais tarde o rapaz volta. Perde perdão. Chora baba e ranho. Implora. E a rapariga, cheia de medo de perder aquilo que lhe parecia a última oportunidade de se apaixonar, amolece. Mas antes mesmo de se consumar o acto de misericórdia afectiva ele falha de novo. Redondamente. Profundamente. Imperdoavelmente. E ela, que não é mulher dada a grandes gestos de clemência, desliga-lhe o telemóvel e bate-lhe a porta na cara. Não sentiu qualquer desgosto de amor… se calhar já nem está apta para sofrer mais nenhum, uma espécie de imunidade emocional que lhe adveio de uma dor crónica de coração. Pelo contrário, alivio. É que já é difícil partilhar a vida com alguém, mas é praticamente heróico partilhar quando não se gosta. E, de facto, aquela falta que tinha sentido num primeiro momento revela-se apenas a falta de uma presença abstracta e não de um “tu” particular. De modo que quando trancou a porta sentiu um peso sair-lhe de cima. Não apenas porque o “the end” chegou cedo (mas já tarde demais), mas também porque ficara evidente que ninguém se servira de ninguém. Ou melhor, tinha-se servido mutuamente um do outro. A rapariga porque queria uma companhia que lhe adoçasse o ego. O rapaz porque queria… o que queria, nem ela sabe. Tudo sem violação do princípio kantiano, porque, ao fim ao cabo, uma instrumentalização anula a outra.
A história é esta. Como bem avisei, nada de excepcional ou exótico. Gostava de ter outra coisa para contar, mas isto é o que tenho.
Porém, há aqui um desfecho extraordinário. É que passados meses de infrutíferos contactos por parte dele, decidi finalmente que poderíamos, e deveríamos, ser amigos. Não apenas porque partilhávamos agora a mesma cidade, mas também porque sentia falta do amigo que ele tinha sido um dia. E, convenhamos, a aproximação do espírito natalício deu um empurrãozinho. Marcámos um jantar. Eu estava ansiosa por retomar a nossa amizade no ponto em que a tínhamos parado. Mas para isso precisava de esclarecer uma série de mal-entendidos que poderiam aniquilar a nossa futura vida como “camaradas”. Durante um agradável jantarinho recordámos os bons tempos juntos. Queria, antes de mais, esclarecer algumas mágoas que poderiam ter ficado. Por conseguinte, rematei a conversa dizendo que acreditava que iríamos ser bons amigos, e que não podíamos deixar que um namoro de semanas se intrometesse no nosso companheirismo, até porque tinha sido uma coisa insignificante em termos de sentimentos, mais motivada pela mútua solidão do que por alguma outra coisa. “Afinal, nem sequer gostávamos particularmente um do outro”.
“Não, enganas-te. Eu estava perdidamente apaixonado por ti. “
Desculpe…importa-se de repetir?
Estás-me a dizer que gostava efectivamente de mim, que deitou tudo a perder porque sabia de deste lado havia um vazio, que sofreu com o fim? É isso que me estás a dizer?
Não sei se era isso. Posso garantir-vos que a foi uma noite maravilhosa, com um amigo que quase sinto como sendo de longa data, que me deixou à porta de casa e ficou ali a ver-me entrar antes de arrancar ruidosamente com o carro, que desde então não mais tive notícias dele, nem sequer uma resposta aos meus votos de feliz Natal, que não me atende telemóveis, e que o silêncio só foi quebrado por uma mensagem dizendo que estava de volta a um local que ambos tínhamos partilhado e que as recordações eram imensas.
Deixo a cada um liberdade para divagar sobre o que ele terá querido dizer.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Ainda há espaço para mim?


Somos todos pessoas muito interessantes. Temos vias cheias, recheadas com projectos, cursos, teses, viagens, amigos, saídas, jantares, cafés, ginásio, conferências. Sim, de facto termos vidas cheias… de nada.
Estamos tão (pre)ocupados a participar em tudo, a conseguir grandes feitos, a manter dois empregos, a fazer uma tese, a satisfazer um rol de amigos, que não sobra espaço para mais nada. Nem para mais ninguém.
Será que temos espaço nas nossas preenchidíssimas vidas para encaixar uma meia laranja?
Reformulo: será que a nossa meia laranja ainda tem espaço na sua vida para nos encaixar a nós?
O que torna uma pessoa interessante são os diversos interesses que ela própria tem. Dificilmente andaríamos de beicinho caído por um tipo que tem um daqueles empregos das 9 às 5, a carimbar papéis e a atender telefones, e que vai para casa babar-se no sofá enquanto vê televisão e come jantares de micro-ondas. Daqueles que nunca foi mais além de Badajoz para comprar caramelos, que só consegue discutir futebol e o estado do tempo.
Agora, imaginem um tipo que salva vidas num hospital, que tem uma empresa, que escreve crónicas, que faz os aviões voar, que já tirou 2 ou 3 licenciaturas, que anda a aprender mandarim, que fez um curso de culinário, que todos os dias corre 10km, que pratica surf ao fim de semana, que constrói casas nas arvores, que joga futebol ou basquete com os amigos, que recolhe cãezinhos abandonados nas ruas, que deu a volta ao mundo de mochila às costas e conseguiu até entrar no Butão. Por este é fácil cair de quatro.
Imaginem tudo isto. Ou uma pequenina parte que seja. E imaginem uma existência com esta criatura. Viver deslumbrada com os seus encantos, os seus talentos. Poder falar dele aos amigos, contar tudo o que ele faz. E pensar na sorte que temos em tê-lo na nossa vida. Ou antes, em não tê-lo. Por muito pequeninas que sejamos, onde raio íamos caber no meio de tanta coisa?
Quando passaríamos tempo juntos? Ao fim do dia, quando chega cansado a casa e só quer relaxar e ir para a cama? Quase aposto que não terá muito apetite para conversar, para ouvir como correu o nosso dia. Até porque o dele vai ser sempre bem mais interessante que o nosso. Ao fim de semana? No feriado? Durante as férias? Esqueçam tudo o que pensavam sobre programas a dois nestas alturas. Não há tempo. Não há espaço.
Se alguém dos que me está agora a ler se apaixonou por uma pessoa interessante já deve ter compreendido por esta altura que passará os fins-de-semana sozinho em casa a trabalhar, a noite sozinho no sofá a ver filmes, os feriados sozinho a tomar café numa esplanada e a fingir que lê o jornal, as férias sozinho na praia sem ninguém que lhe espalhe bronzeador nas costas. Enfim, não necessariamente sozinho. É para isso que servem os amigos, as amigas, os wanna be something else. Para nos arrastar fora de casa, nos levar a jantar, nos obrigar a tirar férias. E, uma vez por outra, para nos perguntar se temos a certeza de que é isto que queremos (porque os nosso amigos foram bem mais ajuizados e tiveram o bom senso de escolher alguém igualmente interessante, mas talvez um bocadinho menos, e por isso mesmo, por causa desse menos, mais disponível para estar presente).E nós respondemos que sim, claro que temos certeza, somos tão felizes… E entretanto já olhámos meia dúzia de vezes para o relógio, e outra dúzia de vezes para o telefone só para ter a certeza que ele não ligou.
Sabemos que não vale a pena programar nada para o fim-de-semana porque certamente que vai parecer alguma urgência que se irá sobrepor ao nosso fútil plano de passar uns dias fora. Nas férias o melhor é inscrevermos num curso no estrangeiro, e assim parece que também nós temos planos importantes. Ou então viajamos com as amigas single, se é que ainda sobra alguma. Mas claro que elas dispõem de uma margem de manobra que nós não temos porque, afinal, nós não somos single. E só estamos ali, no meio de gente desimpedida e aventureira, por mero acidente de percurso. Nós temos alguém à nossa espera por isso há uma série de comportamentos que nos estão vedados. Sim, à nossa espera. Provavelmente já nem se lembra disso, ou está do outro lado do mundo, ou anda ocupadíssimo a salvar o universo, mas está por aí algures.
Finalmente lá nos convencemos que a única forma de sobreviver a isto com alguma sanidade mental é sermos, nós também, pessoas daquelas com milhentos planos, empregos exigentes, saídas todos os sábados. E embarcamos nesta vida, na qual descobrimos que somos efectivamente muito felizes e nos sentimos realizados, não fosse aquele pequeno óbice de termos perdido qualquer contacto com a meia laranja. É que se era difícil conjugar uma agenda complicada tornou-se impossível conjugar duas agendas complicadas. De modo que mantemos a casa em conjunto, onde até dormimos na mesma cama, mas ora está um cansado ora está o outro, de forma que em bom rigor somos companheiros de casa que partilham o mesmo quarto e o mesmo endereço postal. Encontramo-los de quando em vez nas festividades e continuamos a entregar o IRS em conjunto porque saí mais barato. Portanto, sim ... somos um bocadinho mais do que meros companheiros de casa.

Botton line: as pessoas interessantes seriam bem mais interessantes se fossem um bocadinho menos interessantes.