quinta-feira, 29 de abril de 2010

Homo non- sisus




Sou um daqueles seres menos desenvolvidos que ainda têm dentes do siso a encher a boca e, para meu mal, a provocar sérias dores de dentes.
Ontem mesmo preparava-me para tirar outro desses pedregulhos da minha boquinha, mas o dentista explicou-me que não o poderia fazer dado que a coisa estava tão complicada que só no hospital, para o caso de surgir alguma complicação. Penso que quando na mesma frase se juntam as palavras “hospital” e “complicação” a empreitada não se antevê fácil, de modo que decidi para com os meus sapatos (que botões uso pouco) viver com ele enquanto o danadinho não decidir pedir o divórcio da minha gengiva.
Parece que cerca de 99% por cento das criaturas da espécie humana conservem ainda estes resquícios do tempo em que vivíamos nas cavernas e comíamos mamutes. Os restantes 1%, bem, esses, são seres superiores que conseguiram prescindir deles. Mais perfeitos. Os seres humanos do futuro.
O que leva a questionar: para além de não terem dentes do siso, que outras características terão estes post-humanos? Será que ainda cospem no chão? Será que fecham a porta na cara da quem vem atrás? Será que se coçam em público, particularmente nas partes baixas? Será que os espécimes masculinos já aprenderam a mudar uma fralda, a respeitar e tratar como igual as suas companheiras e recordar-se das datas especiais? Será que os espécimes femininos já conseguem mudar um pneu, pagar as suas próprias contas e deixar-se de chantagens emocionais? Será que já aderiram ao banhinho diário? Será que se deixaram de pulseiras de outro e crucifixos ao peito? Será que na parte traseira do carro ainda usam almofadas de cetim e chapéus de crochet para esconder o papel higiénico? E por falar em carros, será que já ultrapassaram a moda dos carros tuning? Será que ainda deixam crescer a unhaca do dedo mindinho para propósitos que nem ouso antever? Será que falam ao telemóvel no cinema? Será que mastigam de boca cheia, e fazem questão de abrir a goela para que os circundantes possam ter uma bela vista de restos de comida semi-triturada? Será que aproveitam o guardanapo para se assoarem? Será que se regozijam com o sofrimento alheio, seja humano seja dos outros animais? Será que ainda ficam tribalmente violentos nos estádios de futebol? Será que subjugam os que têm uma diferente cor de pele?
Não pode ser um mero dente – ou melhor, quatro meros dentes – a fazer de nós seres mais evoluídos. Claro que sempre se pode dizer que esta nota nos afasta mais dos animais e nos distingue da pura besta carnívora. Mas, pergunto eu, serão os (outros) animais necessariamente menos evoluídos do que nós? Nunca ouvi dizer que uma rebanho de ovelhas tivesse bombardeado outro rebanho por questões religiosas, nem tão-pouco que ande por aí a vaguear um gato dealer que trafique substâncias ilícitas que mata milhares de gatos, inclusive gatinhos, e muito menos que algum hipopótamo incompetente e corrupto que trabalhe numa empresa pública onde chegou devido ao nome de família e aos enredos dos jobs for the boys, caindo anualmente na sua conta bancária mais de um milhão de euros. Nem alguma vez me chegou aos ouvidos que haja vacas que morram de fome para poder caber em bikinis ou que alguma escaravelha teime porque teime em ter viagens pagas com o dinheiro dos contribuintes entre o Parlamento e o Paris das escaravelhas.
Hás uns anos atrás alguém perguntava, num momento que ficou célebre, “e o burro sou eu?”
Bem, não antevejo semelhante momento de celebridade, mas acho que a pergunta que se impõe é esta: “e os humanos somos nós?” .

terça-feira, 27 de abril de 2010

DESCULPE, MAS A SUA NÃO-NUDEZ AFECTA A MINHA FALTA DE PUDOR


Antes de mais quero explicar que uso aqui o termo “pudor”, não como sinónimo de falta de decência, ou compostura, ou de sentido de valores, mas como ausência de melindres derivados de certas convenções sociais. Não sendo eu um modelo de virtudes, e muito menos uma paladina dos bons costumes e da ordem pública, e menozinho ainda uma arauta do conservadorismo, tenho para mim que os meus pais fizeram um bom trabalho na minha educação. E embora eles tivessem gostado que eu fosse mais ajustada e convencional, nessa parte o projecto paternal fracassou. Porém, creio que uma das coisas que me foi ajudando ao longo dos anos a levantar a cabeça cada vez que deu uma daquelas escorregadelas gigantes - como quem diz, cada vez que sou a actriz principal numa daquelas situações humilhantes e embaraçosas, que muitas vezes nos perseguem para o resto da vida, que eu não faço a coisa por menos – é precisamente a minha quase absoluta falta de pudor. Digo “quase” porque há de facto uma vez ou outra em que fico encavacada ou começo a agir como uma barata tonta acabada de sair da clínica de desintoxicação. Mas em regra sigo a máxima de que o resto do mundo não é melhor do que eu, de modo que não lhes reconheço legitimidade para me julgarem.
Dito sito, vamos ao tema. É sabido que é na relação com o nosso corpo que esta coisa do pudor mais vem ao de cima.
Eu própria me defronto com algumas limitações. Não propriamente por vergonha, mas derivadas de uma certa ideia de privacidade corporal (andei a ler jurisprudência espanhola, está visto), que me inibe de mostrar os meus atributos – ou falta deles – ao primeiro transeunte. É claro que isto deriva também de um convencionalismo social. O corpo humano, em si e por si, nada tem de vergonhoso ou decadente. Bem pelo contrário. É uma máquina avançadíssima, que devemos amar e cuidar. Apesar dos padrões de beleza que me entram pelos olhos dentro desde a minha primeira visita à televisão e às revistas me terem imposto certos limites no meu peso, hoje, mais crescida, concluo que o corpo humano é bonito em todas as suas formas, cores e tamanhos.
Claro que o facto de ser uma obra de arte não significa, sem mais, que tenha que estar exposta ao público. Eu até sou menina para mostrar uma relevante dimensão de pele, mas creio que há esferas de intimidade que devem estar reservadas para momentos especiais e para pessoas especiais. Depois há outras da intimidade que são naturalmente reveladas em certas situações da vida. Refiro-me, senhora e senhores, aos balneários do ginásio.
Para quem toma banho no ginásio a visão de um grupo de corpos humanos do mesmo género, nus mas de chinelos, a vaguear por entre chuveiros, não é coisa nova. É corriqueira e, diria mesmo, tão natural como a sua sede. Pois se vamos todos tomar banho, e todos sabemos ao que vamos, das duas uma: i) ou o nosso sentido de pudor não nos permite a veleidade de vaguear nu por ali com a mesma naturalidade com que o fazemos em casa (isto pressupondo que em casa o fazemos, porque sei de muito boa gente que se assusta e ruboriza com a sua própria imagem nua ao espelho), e nesse caso resta-nos arrastarmo-nos para a toca e tomar banhoca na santidade do lar; ii) ou, em alternativa, tomamos ali mesmo, agindo como pessoas e não como bichos assustados.
Faço notar que não censuro a primeira opção. Cada um vive consigo mesmo da melhor maneira que sabe e é legitimo que por motivos educacionais ou outros eu tenha sacralizado o corpo pensando que mais ninguém no mundo tem uma coisa semelhante, de modo que o melhor é esconde-lo bem. O que me incomoda mesmo, mas mesmozinho, é andar eu no meu rodopio de balneários, tentando despachar-me a tempo de ainda poder almoçar, e dar de caras com olhares assustados, agarrados a uma pequena toalha como se a sua vida dependesse disso. Confesso, fico atrapalhada. Quer porque as monjas da toalha teimam em andar bem devagarinho, não vá a dita cair e mostrar uma coisa que mais ninguém tem, quer, e sobretudo, pelos olhares acusadores que me enviam a mim, despudorada, que ando por ali com à vontade de quem sabe que não tem consigo nada de mais nem nada de menos. Não largam a toalha em nenhuma circunstância. Estou em crer que tomam banho assim, agarradas à toalha, e já vi autênticos actos de malabarismo em que se vestem sem nunca tirar a toalha, como se fossem um Houdini a fugir do colete de forças.
O recato corporal merece-me o maior respeito. Eu própria já tive o momento zen num local de nudez pública. Mas nem eu sabia ao que ia (quem se lembraria que numa sauna mista seguiriam a regra da nudez total? ), nem nessa altura estava na disposição de ficar nua dado o contexto envolvente. Não por ser uma área mista. Só é comida quem se deixa comer, tenho para mim. Mas achei que na altura não era apropriado para mim, e só de mim falo, fazê-lo, por motivos outros que nada têm a ver com os restantes corpos. Por isso me envolvi na toalha. Mas, e este é o ponto que quero focar, fiquei na minha. Com a minha toalha, com a minha ausência de nudez, com o meu pudorzinho, confesso. Não estou a sugerir uma imposição à nudez, mas sim a impor a ausência de recriminação face aos que os outros fazem. Eu, na tal célebre sauna de nudez total, não estava na disposição de me despir. Mas não ousaria recriminar quem o faz num sítio onde se convencionou que essa é a regra de comportamento. Eu é que estava desajustada e por isso saí logo que pude. Teria hoje, passado quase uma década, agido de forma diferente? Não sei.
Pergunto eu: se quem opta por tomar banho num sítio destinado a ser partilhado com os demais sabe, à partida que vai encontrar corpos nus, porque se chocam tanto depois? Será que ficam chocadas com a minha nudez? É que eu devo aqui revelar aqui o profundo trauma que sofre a minha falta de pudor com a sua não nudez. Ou melhor causa-me alguma desconforto o olhar vigilante, e mesmo recriminador, que se esconde debaixo da toalha.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

O dia em que o mundo acabar


Já tinha ouvido dizer que o mundo ia acabar um dia destes. Depois, aproveitei aquele fugidio serão de Domingo para ver um tal “2012” (não, não recomendo). Finalmente, decidi confirmar as minhas suspeitas com uma pesquisa. E sim, certifico que o mundo vai acabar mesmo dia 21 de Dezembro de 2012.
Se porventura tal não suceder não me venham pedir contas a mim, que eu limito-me a citar o que li na fonte de infirmação mais fidedigna do mundo: a internet. Se querem exigir uma explicação a alguém, ou uma indemnização caso a coisa não se dê, é favor dirigirem-se aos Maias, que esta profecia é deles. O dado curioso da história é que foi depois plagiada por diversas outras profecias, desde um tal livro chinês sobre filosofias e concepções, até ao mago Merlin, passando pelo Nostradamus. Enfim, se alguém tiver mais curiosidade do que o teor normal de estranheza despertado por uma sentença de morte a pairar sobre o planeta, faça o favor de consultar http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=21960&op=all ou http://www.fimdomundo2012.com/, e a partir daqui poderão acreditar ou desacreditar, conforme assim o entendam.
A questão é que se o mundo terminar mesmo em 2012 tenho que repensar a minha vida. Desde logo, será que faz sentido continuar a evitar chocolates e bolas de Berlim? Ou seja, se o mundo vai acabar em breve provavelmente o pouco tempo me resta não será suficiente para eu me assemelhar a um texugo. E, mesmo que o seja, mesmo que eu me torne a Miss Piggy, não será que de qualquer não viverei assim tanto para ficar angustiada?
Basicamente, a minha questão é esta: tivesse eu absoluta certeza que o mundo vai terminar, que faria? Será que me desleixava e me deixava mergulhar na imensidão da preguiça, aproveitando cada sesta, casa não ida ao ginásio, cada bolacha? Ou, pelo contrária, investia ainda mais em mim de forma a deixar um cadáver bonito? Bem, como o anunciado fim do mundo não parece deixar algum cadáver minimamente reconhecível a primeira hipótese ganha peso (o que não deixa de ser uma imagem bastante adequada à situação).
Será que faz sequer sentido terminar a tese, e continuar a passar dias e noites fechada em casa? Provavelmente o melhor é carpir o dia, carpem diem, como quem diz, soltar a franga, mergulhar na prostituta da loucura (achei que era um sinónimo mais polido para o vulgo “puta da loucura”). Mas, por outro lado, depois de tanto tempo, anos mesmo, a investir neste escrito de profundíssima sabedoria, desistir seria morrer na praia, que é sem dúvida um desânimo porque nos arriscamos a que uma gaivota mais atrevida nos faça cocó no cadáver bronzeado. Em suma, deixa-me cá agarrar ás teclas e assim ao menos morro “senhor Doutora”.
Será que vale a pena informar os meus ódiozinhos de estimação do quanto me incomodam? Não o saberão eles já? Que ganham com isso? Ou melhor, que ganho eu com isso? Morrerei mais leve? Ou mais pesada?
Já dizer àqueles de quem gosto o quanto os amo, a falta que me fazem, o importante que foram na minha vida, isso parece-me bem mais relevante. Quantas vezes nos esquecemos de o fazer? Acho que damos estas coisas como dado adquirido e supomos que os outros também. Para que vamos dizer ao pai e à mãe que gostamos deles, se eles já o sabem? E à avó? E àquele amigo que nos atende o telefone a qualquer hora? A verdade é que, mesmo que o saibam (e se passámos tantos anos ainda o desconhecem é porque alguma coisa se passa com a forma como manifestamos sentimentos) ouvir dizer estas palavras funciona sempre como certificação, inspiração e reconhecimento. Bem sei que os gestos valem mais do que as palavras, que o decisivo é a forma como tratamos as pessoas e não aquilo que lhes dizemos, porque, afinal, as palavras são mais facilmente manobráveis do que os gestos e as atitudes. Mas, ainda assim, não sabe bem ouvir dizer o quanto somos amados e o quanto precisam de nós? Já imaginaram o que será morrer assim de repente, caindo fulminados no chão, deixando tanta coisa por dizer? Deixando cá alguém a pensar que tinha apenas uma importância relativa na nossa vida quando, afinal, era o centro da nossa existência, o sol e as estrelas do nosso mundo? É curioso como a língua está sempre pronta para criticar e deitar abaixo, mas se torna tão preguiçosa no momento de dizer coisas bonitas. Num mundo perfeito todos diríamos àqueles que nos são próximos o quanto gostamos deles logo pela amanhã, certificando cada dia a sua extrema relevância.
“Bom dia, já te disse hoje que gosto muito de ti?”

quarta-feira, 21 de abril de 2010

O escândalo “holydaygate”


Uma das desventuras (porventura até a única) de não ter namorado é a ausência de companhia para férias. Alguém que discuta connosco o local do destino, que compre os mapas e os remédios que nos esquecemos de comprar, que partilhe convosco a comida do avião e que possa aparecer nas nossas foto de recordação.
Para as mulheres sozinhas deste mundo – corrijo, independentes – restam, porém, algumas alternativas… cada uma mais sedutora do que a outra, digo já. Uma das possibilidades é partir sozinha, à conquista o mundo como Marco Polo conquistou a Ásia. Sem dúvida que a força premente das circunstâncias nos força a fazer muitos amigos e a reencontrarmo-nos com o verdadeiro eu, blabla, blabla, blabla, aquelas coisas do redescobrir-me a mim próprio, que aparecem nos livros de ioga e de meditação, e das quais prescindo, não apenas porque grande parte das viagens da minha vida foram apenas comigo mesma e só comigo, de modo que been there, done that; mas também porque creio que depois de 33 anos a viver comigo – e na maior parte dos anos só mesmo comigozinho - já conheço cada milímetro do meu corpo a ponto de nesta altura do campeonato estar preparada para conhecer novos milímetros nunca antes explorados, de outros corpos preferencialmente. Mas sobretudo porque eu gosto de companhia, especialmente nas férias. Gosto de ter alguém ao meu lado com quem partilhar um gelado, um amanhecer, uma paisagem de cortar o fôlego.
Se esta opção parece assim, à primeira vista, a mais aventureira, na verdade, bem mais temerária é a segunda: partir com uma companhia masculina que se enquadre nas categorias de amigo ou amigo colorido. É que neste cenário tudo pode acontecer. E quando digo tudo falo inclusive de homicídios violentos. Na vida normal e tranquila do dia-a-dia os nossos amigos podem parecer gente normal, amigalhaços com quem partilhar tudo, inclusive um pouco mais que tudo, mas em período de férias aquelas hormonas transmutam-se e não são as poucas as histórias de meninas que se vêm a braços com um apaixonado desconhecido e indesejado. Recordo sem nostalgia a única vez em que ponderei seriamente umas férias desta índole, no caso, em Marrocos, com um suposto grupo de amigos do meu amigo (completamente a preto e branco, que eu não sou dada a pintar livros de colorir com amiguinhos) de número indefinido, mas tudo gente simpática, segundo ele em assegurou. Por uma curiosidade miraculosa uma par de semanas antes da coisa se dar quis saber mais detalhes sobre o tal suposto grupo, e vim a saber que afinal já estávamos reduzidos a quatro: eu, ele e um casal de namorados. Ora, quando eu já debatia para com os meus botões como se faria a distribuição de quartos (preciso de fazer um desenho???) o cavalheiro facilita-me a coisa. É que porventura atento à mudança de tom da minha voz, denotando alguma hesitação, tentou convencer-me com imagens idílicas das nossas férias: no meio do deserto, ao por do sol, a beber um chá. Mas não ponderou o discurso a saiu-lhe da boca um “neste cenário ainda te apaixonas por mim”. E “prontos”, subitamente a minha tia-avó adoeceu e eu, com muita, muita, muita, pena minha já não pude acompanhá-lo.
Finalmente, a terceira opção da mulher sem attachments é mesmo ir com as amigas. Até aqui tudo bem. Parecem as férias ideais. Isto não fosse o facto de eu ter alguma dificuldade em passar muito tempo (leia-se, dias) só com mulherio. Já para não falar dos casos em que as amigas passam as férias banhadas em mojitos e margueritas, de modo que nos vemos na posição de baby-sitter de mulheres feitas, ou se embeiçam por alguém, deixando-nos à nossa sorte, ou, pior ainda, se embeiçam por alguém e contam com o nosso apoio solidário para entreter algum amigo do dito.
Sempre pensei que os namorados nos livrariam destes dilemas existencais. Qual não é o meu espanto ao descobrir que hoje em dia estão na moda as férias a solo: ele com quem lhe der na gana e nos com quem a sorte (ou o azar) nos coloque no caminho. Quero começar por dizer que não tenha nada contra os casais que optam por este tipo de arranjo, por ser aquele que melhor se coaduna à respectiva relação e às personalidades de cada um deles. Vive e deixa viver, sempre disse. Mas, muito sinceramente, esta não é a minha onda.
Eu quero alguém na minha vida para partilhar o bom, o mau e o assim-assim. Os dias rotineiros de trabalho imenso, os fins-de-semana de alguma tranquilidade e as férias de loucura. Senão vejamos: durante todo o ano, seria eu a aturar-lhe os problemas (de trabalho, com os irmãos, com os amigos) e as crises existenciais, a cuidar-lhe da roupa e da comida, em suma, a levar com um tipo carrancudo, cansado e impaciente. Eis que chegam as férias e o senhor pega nos amigos, e naquela parte de si mais descontraída, divertida e sexy, e parte com eles? E eu? Bem, não se preocupem comigo, porque a mim sempre me resta uma daquelas fabulosas três hipóteses. Depois alguns admiram-se de terem que entrar no avião de regresso baixando um pouco mais a cabeça…
Segundo esta lógica, e já agora, porque não temos quartos separados? Ou melhor ainda, vivemos em casas separadas. Em bom rigor, nem precisávamos de nos encontrar para outra coisa que não fosse a procriação, e isto apenas enquanto não puder ser feita à distância, eu numa capital europeia com companhia indefinida, ele no resort com os amigos e umas cervejas.
Um namorado deste tipo será sem dúvida perfeito para muitas mulheres neste mundo. Aquelas de nós mais individualistas, que não suportam a mesma companhia durante muito tempo. É, sem dúvida, perfeito para quem queira aproveitar as férias para experimentar, digamos assim, algo novo. Simplesmente, eu não sou uma mulher dessas. Eu sou uma daquelas que procura um companheiro para a vida, alguém com quem construir alguma coisa que perdure, que me faça sentir segura e desejada, em suma, que não sinta necessidade de estar sem mim. O conceito de “férias da relação” só tem sentido quando a relação se tornou numa imposição ou num mal menor. Não é que as relações arrastem consigo um compromisso de passar férias juntos, como se fosse uma espécie de dever jurídico, que temos que cumprir, ainda que contrafeitos. Para isso prefiro férias sozinha e, já agora, uma vida sozinha. Mas se a nossa cara-metade não sente a necessidade de passar férias connosco, de ter a nossa companhia, especialmente naqueles momentos nos quais, supostamente, estamos mais felizes, então, é porque falta aquela coisinha especial a que se tem vindo a chamar amor. Para outras pessoas esta necessidade não é essencial, pode revelar-se dispensável e mesmo evitável. Para mim, não concebo coisa diferente. De forma que aquele que fizer as malas e partir sem mim nunca será a minha laranja. Na melhor das hipóteses será a minha meia-banana, mole e prestes a apodrecer.

terça-feira, 20 de abril de 2010

(Não) deixai vir a mim as criancinhas


Nos últimos tempos não se fala de outra coisa. Depois da suposta licenciatura, do Freeport e das escutas, desta vez não é o Governo o actor deste filme de espionagem, mas sim a Igreja Católica. Parece que aqueles senhores de ar bondoso (ou nem tanto) que nos baptizaram, nos casaram e nos sepultaram afinal… também nos violaram, ou, na melhor das hipóteses, abusaram.
As histórias sobre abusos sexuais cometidos por padres não são propriamente novas, mas atingiram agora uma dimensão tal que a própria Instituição se viu forçada a reconhecer publicamente a existência do problema. Sem grandes arrependimentos. Sem muitos pedidos de perdão. Sem humildade. Quase faltou dizer que a culpa foi das perversas crianças que assim seduziram aquelas almas caridosas.
É óbvio que este escândalo tem sido aproveitado para outros fins que ultrapassam este mal concreto. Todos aqueles que têm alguma coisa a dizer contra a Igreja se agarram a este pedaço de carne podre para mostrar todas as putrefacções da instituição. Eu própria faço um grande esforço para avaliar esta situação sem inquinar o meu juízo com ideias pré-concebidas que tenho acerca de toda a máquina religiosa. Racionalmente sei que a maioria dos padres são gente de bem. A pedofilia, apesar de tudo o que tem sido dito, respeita apenas a uma pequena parte dos elementos da Igreja Católica. O que verdadeiramente me incomoda não é o que se passou ao longo dos anos (estas coisas acontecem nas “melhores famílias”) mas sim o excessivo chamamento de virtudes, o encobrimentos e a reacção actual.
Não sei se a pedofilia é uma doença, uma parafilia, ou outra coisa qualquer. Só sei que grassa por todo o lado, sobretudo onde menos seria de esperar. Provavelmente o número de padres pedófilos não é superior ao número de advogados, de homens do lixo ou de carpinteiros que o são. O que difere é o grau de exigibilidade. Para quem sempre bradou aos sete ventos as benesses de uma vida pura e casta pode dizer-se que estes senhores gostam bastante dessa coisa suja e vil chamada sexo de que nós, comuns mortais, tanto gostamos. Tantas centenas de séculos a fazer-nos sentir mal e por usamos o sexo para outros fins que não a procriação e…. e agora isto? No fundo, é uma questão de exigibilidade. A todos nós, pessoas minimamente decentes, está impedido que nos degrademos à categoria de bestas. Mas a uns é mais exigível do que a outros. A quem espalha com tanto furor a palavra justa, o amor, a caridade, é especialmente exigível.
Sobretudo atendendo aos valores básicos da doutrina católica, precisamente aquilo que muitos de nós apontamos o dedo e que nos fez afastar dos seus ditames: a moral repressiva e castradora. Quem tem telhados de vidro deveria ser mais comedido nas suas palavras. O sexo é uma coisa linda e maravilhosa na qual vale tudo menos tirar olhos, mas apenas desde que se verifique consensualmente entre adultos. Quando se arrastam crianças para um jogo do qual devem estar arredadas durante ainda muito tempo torna-se uma coisa repugnante, feia e criminosa. Por isso não se percebe o encobrimento, o silêncio. Se me dizem que durante todos estes anos nenhuma das cúpulas da Igreja soube deste facto estão a tomar-nos por idiotas, pois dificilmente se encontra organização mais controladora e omnisciente do que esta. Se, pelo contrário, querem insinuar que pensaram que protegiam as vítimas ao esconder o sucedido tomam-nos por mais idiotas ainda.
E como se não bastasse tudo isto, eis que há poucos dias atrás, qual cereja no topo do bolo, encimam esta espiral de ofensas com a assimilação entre homossexualidade e pedofilia. Não conheço os estudos referidos pelo cardeal Tarcisio Bertone e que serviram de base a semelhante afirmação. O que eu sei é isto:
i) Apesar de tudo o número de crianças abusadas e violadas do sexo feminino supera as do sexo masculino, excepto no que se refere às vítimas de casos relacionadas com padres, que, de facto, são em regra do sexo masculino, de modo que a estar correcto o raciocínio apresentado estes padres seriam, todos eles, homossexuais (se é que a orientação sexual de um padre é minimamente relevante);
ii) Em termos percentuais, tenho para mim (mas assumo a coragem de dizer que é uma opinião pessoal e não um suposto estudo cientifico) que o número de pedófilos entre os heterossexuais supera em muito os pedófilos homossexuais;
iii) A maior parte de pedófilos de que tenho conhecimento relaciona-se, em termos de relações sexuais adultas, com pessoas do sexo oposto, pelo que apenas a sua fixação sexual com crianças é que os atrai por crianças do mesmo sexo;
iv) O único ponto em que concordo com o Exc. senhor cardeal é quando nos diz que não há relação entre celibato e pedofilia. Mas embora assim o creia, acredito que nenhum homem (e, afinal, os padres são homens) foi feito para viver só e para abdicar de uma parte importante da sua realização como pessoa. O amor a Cristo não substitui o amor terreno, mesmo que carnal. Afinal, se Deus não quisesse que tivessem sexo não lhes teriam dado pilinhas e em vez disso fariam chichi pelo ouvido ou pela narina. O celibato deveria ser uma escolha consciente de cada um.
Gostava de poder terminar esta reflexão com algum tipo de comentário de teor light, que nos permitisse fechar esta leitura com um sorriso. Se há coisa na qual em regra me consigo sair bem é em tirar um coelho da cartola e conseguir encontrar algum nariz de palhaço na pior desgraça.
Desculpem, mas desta vez não consigo.

domingo, 18 de abril de 2010

A NORA PERFEITA


Conhecer os pais dele é sempre complicado. Não para mim, que sou perfeita. Eu penso que sim. O meu papá e a minha mamã pensam que sim. Logo, será de prever que os outros papás e as outras mamãs também assim considerem? Ou não?
Sempre encarei com extrema confiança o momento em que se conhecem os pais. Talvez porque nunca tenha perdido um segundo sequer a comprar-me com a ex do meu actual. Chamem-lhe egocentrismo, mas eu prefiro falar em “auto-consciências das minhas potencialidades”. Porém, quando me apercebi que estava a ocupar o lugar de uma menina prendada, tremi. Quando a bendita da ex é uma exímia dona de casa, pouco dada a saídas nocturnas e extravagâncias afins, sem grande experiencia no campo amoroso, recatada e discreta, damos por nós a pensar que neste campeonato dificilmente ganharemos a taça, pelo menos quando o júri seja a mãe, a tão temível “mãe”, vulgo (potencial) “sogrinha”.
Com calma, Vera, com calma. Tu tens um mestrado, publicas livros e dás conferências. Viajas por todo o mundo e és perfeitamente autónoma em termos económicos. Não és tu a nora ideal? E a pouco surpreendente resposta parece ser: NÃO. Porque eu já tive namorados. Porque eu tenho alguns furos no corpo e alguns desenhos na pele. Porque eu mal sei cozer um botão e deixo queimar o arroz (já agora, se alguém souber como se recupera um tacho esturricado…).
A verdade, nua e crua, é esta: para as mães deles, que por muito boas que sejamos, nunca estaremos suficientemente apta a cuidar do “menino”. Não fazemos sopinhas como elas, nem passamos camisas como elas, nem temos a paciência delas. Em suma, não há juiz mais exigente do que a mãe do nosso amor. Porque o bom do marmanjo pode ser um trintão com mais de 1,90m, mas para elas há-de ser sempre o “menino”. E nada é bom demais para ele. Muito menos nós. Já a ex… quem sabe…
Chegada aqui concluí que tudo aquilo que enche os nossos pais de orgulho passa ao lado das sogras. Pois que interessa que eu seja citada em acórdãos quando nem um ensopado sei fazer? De que me serve a mim ser fluente em várias línguas quando mal sei distinguir uma agulha de tricot de uma agulha de crochet? E já nem menciono as 20 flexões que faço sem apoiar os joelhos porque, em boa verdade, até ao lado dos meus pais isso passa.
As relações entre sogras e noras podem ser uma autêntica Faixa de Gaza. Há quem leve a mal que não nos levantemos para ajudar a levantar a mesa, mesmo que o próprio filho permaneça confortavelmente sentado a palitar os dentes. Convenhamos, ou se levantam os dois, ou apenas ele, ou ninguém. Mas nós seremos sempre as convidadas. De modo que nada nos deve ser exigido, e tudo o que se faça para além disso é uma gentileza que parte da vontade própria. Há quem queira uma companhia para as compras, que incluem naperons e tacinhas de vidro, matéria na qual sou evidentemente perita. Há quem procure uma confidente para se queixar do marido, como se nós não tivéssemos queixas suficientes da cria. Há quem anseie por uma menina que ocupe o seu lugar de protectora/empregada doméstica/ faz tudo. Há quem, em contrapartida, veja em nós potenciais ameaças ao seu papel avassalador e que, por conseguinte, prefira noras sossegadinha no seu canto, que não atentem contra o seu reinado matriarcal.
Mas também existem situações de autêntica paixão. Não falta quem confidencie que o que mais lhe custou ao terminar a relação foi cortar os laços com a nova família. Eu própria já estive “apaixonada” por uma potencial sogra, e no finalzinho custou-me tanto deixar a mãe dele quanto deixá-lo a ele.
Resta a questão crucial: Que procuramos nós numa sogra?
Quanto a mim, só peço que eduque a sua cria de forma a fazer-me feliz, o que pode ter múltiplos sentidos, conforme a potencial felizarda. A nossa felicidade pode passar por alguém que nos leve o pequeno-almoço à cama ou que escute as intermináveis divagações sobre o último projecto de trabalho, isso já depende de cada uma. Mas uma sogra que consiga este feito bem merece um lugarzinho no coração.
Que procuram as sogras em nós? Quero crer que exactamente o mesmo: alguém que torne o seu menino feliz, mais uma vez, seja lá o que isso signifique.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Boa noite meu amor, fecho a porta ao sair


Há um par de décadas, Sting, grande filósofo de prostituição, luzes vermelhas e campos de ouro, cantava that if you love somebody let them free. Ora, ainda há uns dias atrás, enquanto pedala furiosamente no ginásio e me tentava concentrar numa das televisões na vã esperança de esquecer a tortura a que eu própria me submeto, vi anunciar um filme (sim, os livros de Nicholas Sparks dão filmes) em que a páginas tantas a voz off dizia qualquer coisa do tipo: “por vezes quando amamos alguém temos que nos afastar. Não por amar de menos. Mas por amar de mais”.
E de repente comecei a sufocar. Não de cansaço. Mas de angústia pura. Juro. Continuei a furiosa pedalagem porque, apesar de tudo, a ânsia da elegância (e que bonito ficou!) supera a ânsia dos males de amor. Mas por momentos achei que ia cair da maquineta e começar a espumar pela boca, a arfar, até morrer ali mesmo.
É que aquela afirmação, quase saída de algum Luiz Alfredo (ler isto com acento sul-americano, por favor) de uma novela venezuelana deu-me que pensar, sobretudo dado o momento em que enchei os ouvidos..O que será amar? Gostar de alguém de forma abnegada e pura, tão altruísta como suponho que um anjo ame? Ou gostar de alguém daquela forma louca e insana, que não vê nada à sua frente e por isso atropela tudo e todos, mesmo aquele a quem amamos? É que se o amor corresponder ao primeiro dos sentidos é bem verdade que muitas das vezes o melhor que teríamos a fazer seria afastar-nos e deixar o outro encontrar uma vida que o faça mais feliz do que aquela que lhe podemos oferecer. Já se optarmos pelo segundo sentido enchemos-lhes a existência de nós mesmo, quase em sufoco, desenfreadamente, e não admitimos qualquer outra hipótese que não um final juntos, ainda que um final infeliz. Ora, esta última é a forma de amar dos latinos, pródigos em paixões tórridas e intensas e crimes passionais. E eu, que sou mais latina do que um prato de tomate seco regado com azeite, tenho tendências para estas torrentes de sentimentos vulcânicos. Mas já estou neste mundo há anos suficientes para saber que os outros não são como eu, não amam da mesma forma, não vivem as coisas com tamanha intensidade. E – cá vai agora o que dói mais - que nem sempre eu sou a melhor coisa que lhes pode acontecer.
Não ser eu “a tal” é um medo que me atormenta desde que senti o primeiro aceleramento cardíaco provocado por uma hormona masculina. Acima de tudo, é o tal terror de estar a mais. No caso, de ser um peso morto na vida de alguém. Umas vezes porque não nos querem. Outras porque nos querem de uma forma tal que perdem o sentido das coisas.
É que os outros podem gostar tanto de nós que não vêm o mal que lhes fazemos. E se alguém desistir de um sonho para ficar connosco? Romântico não é? Quase como nos filmes. Mas o que os filmes não mostram é o que se passa depois do tal sonho ser posto de lado. Como é que as pessoas vivem? Será que nos culpam pelo que não são e deixaram de ser por nós?
A primeira vez que ouvi dizer que o amor não é suficiente pensei, do alto dos meus 16 anos, que isto devia ser coisa de gente adulta. Embevecida como estava pelos livros, achava efectivamente que desde que o príncipe amasse a princesa e a princesa o príncipe não havia bruxa má que os separasse. E de facto as bruxas más não têm poder para isso, nem mesmo o professor Chibanga, ali da Amadora. Mas a carreira, as opções profissionais, as obrigações familiares, as diferentes escolhas de vida, tudo isso tem poder mais que suficiente para cavar um Grand Canyon entre nós. Suponha-se que eu não concebo a minha vida sem casar de branco, e viver de aliança no dedo, ao passo que ele não acredita em vínculos. Ou então, que eu dediquei os meus 20 anos a construir uma carreira que segue lançada como um cometa e ele quer uma mulherzinha mais simples e recata que possa viver tranquila na sua sombra. Ou que eu cheguei àquela idade em que quero construir uma família e ele ainda não cortou amarras da casa dos pais. A bruxa má parece bem insignificante ao pé disto, não é?
E porque nós temos sonhos, e porque os outros sonhos têm, e porque ninguém pode ser verdadeiramente feliz a viver os sonhos dos outros, e porque há sonhos que se repelem como a água e o azeite, e porque emergem tantas outras coisas que não conseguimos controlar nem explicar mas que estão lá, e porque… sei lá. Por tudo isto há alturas é que o tal final feliz passa por dois felizes finais separados um do outro.
Por isso, se o nosso alguém não tem a coragem, o discernimento, ou a presença de espírito para nos dizer que tudo acabou, devemos ser nós a faze-lo. Sem dramas nem rostos inchados e vermelhos. Sair com a delicadeza com que um gato salta de uma janela mesmo que depois, já a sós, choremos como se não houvesse amanhã. E durante uns dias não vai haver mesmo. Mas, eventualmente, as coisas melhoram.
Porque nos sujeitamos a isto? Porque abrimos da mão daquilo que mais desejamos no mundo? Creio eu que o fazemos porque o outro merece também encontrar aquilo que mais deseja no mundo.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A Falsa Magra


Todos nós que temos amigas magricelas já passámos por este pequeno drama de corredor: avistamos a amiga ao longe, radiosa e cheirosa, e, mais do que isso, não gordurosa. Pavoneia-se por entre os móveis com o seu pequeno rabinho de coelho, e ri-se para nós com aquela alegria que só conseguem ter as pessoas que agarram as calorias pelos tomates e as mandam dar uma volta. Nós, na ingenuidade que quem gostava de ter tão pouca carne agarrada aos ossos, e embevecidas com aquela mistura agri-doce de ciúme e admiração, entornamos a cabeça para o lado e murmuramos em tom sibilado: “Ai que inveja, és tão magrinha”. E vai, lança-nos um olhar condescendente, olha-nos de alto a baixo para nos tirar as medidas e dá a resposta. Sim, a tal resposta. Ai o que eu odeio esta resposta: “Não digas isso. Sou uma falsa magra”.
Silêncio, que estou a respirar fundo….
Antes de mais, ó minha menina, que raio é isso da falsa-magra? Queres-me tu dizer que na verdade és uma balofa, a lançar gosma pelos poros, mas que de manhã ao acordar te apertas num espartilho digno de uma Scarlett O’Hara e passas assim o dia, respirando utilizando apenas a 10% da amplitude toráxica? É isso que me estás a dizer caramela?
Eis aqui o que eu não entendo: Toda a gente quer ser magra. Mas depois ninguém admite que o é. Eu quase como ser racista. Estamos rodeados deles, mas quase nenhum os tem suficientemente no sítio para admitir que o é.
Tudo bem que anda por aí muito embrulho que esconde peças estranhas lá dentro. Quantas vezes não admirámos uma barriguinha bem tonificada no ginásio para depois chegar aos balneários, a senhora começar a strip-tease que antecipa a abanar, e damos de caras com um daqueles rabos gordos, cheios de celulite, a abanar por todos o lado? Uma visão apocalíptica que poucas de nós irão esquecer.
Mas a verdade é que as nossas amigas não são assim. São lindas, esculturais e sem peles pendentes. E felizmente têm o bom senso de não se colocar ao nosso lado em frente ao espelho do quarto de banho (ou já não sorririam com os dentinhos todos).
A verdade é que a maior parte de nós, euzinha incluída, temos alguma dificuldade em apontar aos outros as suas falhas mais evidentes. Somos capazes de lhes atirar á cara defeitos rebuscadíssimos, mas aquelas coisas que saltam à vista teimamos em ignorar. Eu própria quase criei uma vez uma tese científica demonstrativa que a minha amiga redonda tinha praticamente a minha fisionomia. É bem certo que eu me poderia esconder dentro dela e nunca ninguém me encontraria. Mas como lhe dizer isto? Aliás, como concordar com ela quando me disse isto? “Sim, tens razão, és enorme, uma bola de sebo!”. Dizem por aí que eu digo sempre o que penso, mas asseguro-vos que não é verdade. Há momentos na vida em que sou a maior hipócrita desta parte do hemisfério. Este foi um deles. De modo que lhe disse: “Que disparate. Somos quase iguais, eu e tu.”. Por outras palavras, o engodo da “falsa-magra”.
Bem sei que raramente achamos que estamos magras. Em certo momento da minha vida tinha as costelas a romper pelas costas e ainda assim considerava-me um Demis Russos de vestido. Mas isso foi quando vivia em guerra aberta com a balança e achava que nunca se é suficientemente magra. Hoje em dia assinámos um acordo d e paz (que mais não seja temporário), de modo que tento conviver com os meus centímetros a mais e com a minha tonificação a menos.
Até porque agora, pelo menos, consigo olhar para o chão e não ver os pés, dado ter algum volume na parte superior dianteira. Sim, fico em êxtase de perder 10gr, mas como em regra as perco no enchimento do soutien este deslumbramento é sistematicamente acompanhado de alguma desânimo ao ver o meu decote. Lá está… não se pode ter tudo da vida. A não ser que sejamos a Giselle. Mas ainda hoje estou em crer que se trata de algum produto transgénico a querer fazer-se passar por mera mortal.
E prometo que da próxima vez que subir para a balança e a malvada me deitar a língua de fora, lanço-lhe o meu olhar mais destemido e respondo-lhe com audácia: “O que foi? Sou uma falsa-gorda?”

segunda-feira, 12 de abril de 2010

SENHORA DRA. MULHER-MÃE –CHEFE (TAMBÉM CONHECIDA POR SUPER MULHER)


Há poucos post atrás divagava eu sobre questões de maternidade, mais propriamente sobre a oportunidade da coisa. Suponhamos agora que, decidido ser este o momento, acordamos uma manhã com uma mini-pessoa ao nosso cuidado.
De entre os milhares de milhões de decisões que teremos que tomar, esta parece-me “relativamente” importante: ser mães de ficar em casa ou ser mães de sair de casa? Por outras palavras, mães de carreira ou mães com carreira?
Assistimos hoje a um movimento contrário àquele pelos qual as nossas bisavós, avós e mães lutaram durante décadas: as mulheres voltam a querer ficar em casa e deitam a emancipação para as urtigas. Não sintam neste comentário qualquer tom de desdém perante as novas donas-de-casa, desesperadas ou esperadas. Eu tento respeitar todas as opções, ainda que nem sempre o consiga. Mas não partilho nada a ideia de que todas temos que trabalhar fora de casa e ser bem sucedidas profissionalmente pelo simples facto de ser esta uma luta de gerações. Não me faltava mais nada senão andar agora a fumar umas ganzas e a aderir ao sexo livre só porque nos 70 uns senhoras barbudos, e umas senhoras que para lá caminhavam, fizeram disso bandeira. O grande acquis da humanidade foi o poder de opção e em teoria a opção de usar a marijuana apenas em chapéus ou na boca, ou de ser monogâmica até ao entediamento ou ser poligâmica até à promiscuidade, são opção tão legitimas, todas elas, como a de ficar em casa a mudar fraldas e a lavar pratos ou fazer um doutoramento e assinar pareceres.
O que eu quero dizer com isto é que não censuro nada as mulheres que preferem ser mães a tempo inteiro. Ou mães e donas de casa a tempo inteiro. Ou mães e dondocas a tempo inteiro. Ou só dondocas a tempo inteiro. É que nestas coisas de “tempo inteiro” a escolha depende muito dos zeros que se tenha na conta bancária. Ou melhor, da posição que eles ocupam nos dígitos da conta, se mais para a esquerda, se mais para a direita.
Certamente muitas de nós gostariam de acordar, dar banho ao bebé, prepara-lhe um puré de frutas e legumes caseiro, com as nossas próprias mãozinhas, e passar o dia a passeá-lo no parque. Não o fazemos porque o senhor carteiro tem o péssimo hábito de nos deixar contas na caixa do correio. Já aquelas que nasceram no seio das melhores famílias (supondo que as melhores famílias têm seio, claro está) podem dar-se ao luxo de fazer tudo isso nas horas vagas. Que são poucas, que isto de ir ao ginásio, ao cabeleireiro, à manicura, almoçar com amigas e dar uns minutinhos para a associação de caridade de modo a não nos sentirmos culpadas por não ser pobrezinhas, tudo isso deixa muito pouco tempo livre. Felizmente existe o rebento para justificar a opção de não trabalhar. Mas isto, como já disse, só é possível a quem nasce, ou casa, ou se divorcia, no dito cujo das melhores famílias.
Em contrapartida, outras de nós arrancariam cada um dos cabelinhos da cabeça se tivessem que passar mais do que uma semana em casa a balbuciar conversa de bebé e a ver os programas da manhã. Estas de nós – e eu incluo-me nestas “estas” – precisam de se arranjar pela manhã e sair de casa, de dar ordens (e receber, mas só às vezes), de atender três telefonemas ao mesmo tempo, de pensar em mais coisas que não seja a ementa do jantar.
Mas sejamos práticas, porque o argumento não se resume à realização profissional. a verdade é que o fim de um casamento é uma das maiores causas de pobreza entre as mulheres. O nível de vida masculino aumenta com o divórcio, o nosso diminui abruptamente. Não inédita a historia da senhora que fica sem nada, senão com uma série de filhos a seu cargo. E de pouco lhe vale o título de Dra. quando nunca o exerceu na vida. Reconheçamos que as empresas não tendem a contratar trintonas ou quarentonas sem experiência profissional. O direito inventou esta coisa da “pensão de alimentos”. Mas tenho algum pudor em pedi-la para alguém que não os filhos. A historinha do “só fiquei em casa porque ele me pediu” dificilmente me convence. A mim pede-me muitas coisas, mas eu só faço o que me parece bem. De modo que esperar que o fulano nos sustente depois the end parece-me mesquinho. Um abuso do direito de ser mulher, se assim quiserem por as coisas. Mas mesmo enquanto a love story dura causa-me a mim certa espécie que se tenha que pedir dinheiro a alguém que não os nossos papás (e já lá vai o tempo em que eles nos permitiram essa leviandade). Então, se eu quiser um vestido novo, tenho que pedir ao pai dos meus filhos? E dar-lhe contas de como gasto a mesada mensal que me dá? Olhe, e já agora, um atestado de menoridade, não?
É que por muito que se trabalhe em casa, e não duvido que assim seja, esta profissão ainda não dá salário, nem prémios de produtividade, nem 13.º mês, nem subsidio de desemprego. Por isso, vamos lá a dividir o trabalho dentro e fora de casa. Eu lavo a loiça, mas tu limpas o chão. Eu dou-lhe a papa, mas tu leva-lo a passear. Tu levantas-te de manhã para ir para o escritório. Mas eu também. Não se trata de nos a darmos nós mesmas a oportunidade de sermos profissionais de sucesso. Trata-se também de lhes darmos a eles a oportunidade de serem pais.
Mas, como disse, tudo isto são opções. No meu mundo, as minhas amigas todas trabalham. E chegam a casa e fazem o jantar. E ajudam os putos nas contas. E levam bebes ao médico a meio da noite. E preparam festinhas de aniversário. Em suma, têm filhos. E são crianças fantásticas, e felizes, e inteligentes, e desembaraçadas. Tenho para mim que se existe coisa que atrofie um puto é viver agarrado às penas da mamã o dia inteiro.
Tenho uma mulher na minha vida que é absolutamente fantástica. Horário de trabalho extenso, às vezes pela noite dentro. Sem empregada. Dois filhos. Seria de esperar que andasse sempre a resmungar pelos cantos e a gritar com as pestinhas. Seria, mas não é. Esta mãe prepara festas de aniversário inesquecíveis, com bolos dignos de um mestre de pastelaria, pinturas na cara e temas a condizer. Divide-se entre assados e explicações de história e matemática. Faz compotas e vai a reuniões. A minha prima é, realmente, uma super-mulher.
Caramba, andam por aí tantas super mulheres.

domingo, 11 de abril de 2010

A MENINA DO BENGALEIRO (e sua tromba)


A pedido das melhores familias (não muitas, mas as melhores) reedito a história da menina do bengaleiro e sua tromba, citada num post anterior mas que algumas pessoas no planeta (ainda) desconhece. Cá vai:

Lisboa, sexta-feira à noite. Um jantar capaz de me fazer ganhar 5 quilos numa noite, 2 copos de vinho, seguido de um par de bebidas doces, uma companhia mais doce ainda e, como uma cereja no topo do bolo, terminar a madrugada a agitar os caracóis numa pista de dança. A noite perfeita. Haveria alguma coisa capaz de me irritar? Sim. A menina do bengaleiro.
Não serei a pessoa mais simpática do mundo (nem quero ser, digo já), mas quando estou feliz (e eu estava) tendo a ser especialmente afável. Quanto à boa-educação, meus amigos, estou em crer que o meu nome consta dos top 20 mundiais. Não que seja mérito meu, mas da senhora minha mãe que desde cedo me ensinou o “com licença; se faz favor; obrigada”, que eu recitava em ladainha porque não percebia o contexto concreto de cada uma delas.
Pois bem, nessa noite de mil e uma noites saí eu, linda e fantástica, feliz, sorridente, um anjo, posso dizer. Até que dei de caras com a menina do bengaleiro de uma das casas da capital, que teimava em pedir-me 2 euros por peça (a acrescentar ao que tinha pago à entrada e ao que pagaria pelas bebidas). Até aí, eu ainda aguentava. Mas o problema é que o cavalheiro à minha frente (meu amigo, por sinal) apenas tinha pago 1 euro pelas suas duas peças. Interpelada perante tal incongruência, respondeu-me a dita cuja, com a sua tromba erguida aos céus, que os cachecóis não pagavam, por serem peças pequenas. Ora, vai daí, demonstrei-lhe eu que o meu casaquinho de malha era praticamente do tamanho de um cachecol, e que até podia muito bem enrolá-lo ao pescoço como uma encharpe. Mas a suposta senhora lançou-me um olhar ressabiado e proferiu estas sábias palavras: “Mas não é um cachecol. E mesmo que fosse, eu é que decido que cachecóis pagam e quais não”. Assim mesmo. Ela é que decidia.
Nesta altura do campeonato começava a apoderar-se do mim aquela irritação que nutro por criaturas pegajosas, mas disfarcei-a com o meu sorriso Channel. Agradeci-lhe a gentileza da explicação e ainda a louvei por ser raro encontrar na noite tamanha amabilidade.
Convenhamos: a regra dos dois euros por peça já é duvidosa e discriminatória para as meninas, pois é sabido que nós temos sempre mais peças do que os meninos e que gostamos especialmente de as deixar para trás neste tipo de sítios. Mas o pior, piorzinho, foi a menina do bengaleiro responder-me (a mim!!!!) com tamanha prepotência e arrogância, que ela é que decidia. Deve estar o mundo para acabar quando eu, que sou eu, recebo tal tipo de resposta, sobretudo não tendo dado azo a ela e, bem pelo contrário, a ter abordado de forma educada e especialmente simpática (tendo em consideração a pessoa que sou). A verdade é esta: nesta plantação de escravos só pode haver uma Sinhá, e sou euzinha (desculpa Camila), não é a menina do bengaleiro.
Mas não fiz ondas. Não reclamei. Não revirei os olhos… enfim, talvez um bocadinho, mas nada dramático. É que o meu mais que tudo lançou-me o olhar “por favor, porta-te bem” e não sou mulher para negar coisas ao mais que tudo.
Depois de 3 horas na pista a dançar, finalmente, o homem sente-se cansado. E eu respirei de alívio. É que estava à 180 minutos a ouvir musica e a pensar na criatura, vivendo de garrafas de água para nem sequer cheirar a álcool no momento da minha saída triunfal. Até ao quarto de banho eu fui antes de sair, não fosse ser assaltada por alguma vontade inesperada enquanto a dizimava.
Após ter os casacos na mão sãos e salvos, olhei para ela, como se nada fosse e:… “Ah, já agora, quero também o livro de reclamações”.
Escusado será dizer que saiu logo pela porta a gerente, que me convidou amavelmente a entrar para um local mais privado, e me tentou confortar as mágoas. Já eu, sereníssima, pedi-lhe para chamar a “funcionária do bengaleiro” (nome pelo qual a partir desse momento passei a tratar a criatura), porque não me parecia correcto falar nas costas dela. Note-se como até na filha da putice me revelo uma acérrima do due process e dos direitos do arguido. Ah, jurista até à medula…
A “funcionária” começou por negar ter dito o que disse, mas mantendo eu a minha tranquilidade de quem sabe que tem razão, e porque rematei a questão com um “não vale a pena estragarmos a noite, deixe-me só relatar o sucedido no livro de reclamações e certamente tudo vos correrá pelo melhor”, e porque me apresentei de nome completo (esta pega sempre) e me mostrei entediada, ela pensou melhor na vida. Perante este cenário dantesco para o estabelecimento, a “funcionariazinha” lá optou por pedir desculpa. E era só isto. Era só mesmo isto que eu queria. Não tinha a mínima vontade de perder tempo a escrever um romance, com letra bem redondinha, no livro das pessoas insatisfeitas, até porque sei os muitos dissabores que daí decorrem. Mas queria o reconhecimento da falta. É que o dinheiro custa-me a ganhar. Por isso, quando o gasto gosto de saber que é por uma boa causa: fazer-me feliz e ser bem tratada.
Curiosamente, a partir desse segundo começámos as duas a falar animadamente, e dei comigo a confessei-lhe que seria incapaz de ter o estômago dela para aturar bebedeiras e afins. E digo aqui publicamente que tenho a maior admiração por quem trabalha na noite… só que eu não me inseria em nenhum desses “afins”, pelo que merecia melhor do que uma tromba.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Coimbra, o encanto da despedida


A primeira cidade onde vivi sozinha foi Coimbra, e talvez por isso a coisa mais natural de suceder seria tê-la adoptado como minha. O nosso lar não é necessariamente onde nascemos, mas onde nos sentimos bem. Já isso explica porque nunca foi Coimbra o meu lar.
Coimbra é para mim como aquelas pessoas que nunca nos fizeram mal algum, mas com as quais nunca tivemos empatia. Suporta-las, umas vezes com mais entusiasmo do que outras, mas definitivamente não nos reconhecemos nelas. Também assim os meus anos em Coimbra foram uns melhores do que outros, mas nunca me senti em casa.
Porque permanece tanto tempo? Vicissitudes, diriam os políticos. Uma amarra, digo eu. Ou melhor várias, que variaram ao longo dos anos. Quando cheguei, em 94, a ambição da licenciatura em Coimbra, o desafio de saber se era suficientemente boa para a terminar com algum brio. Recordemos que nessa altura direito em Coimbra causava esgotamentos, depressões e muitos egos partidos. Mas já então essa fúria de viver mais depressa do que o doce ritmo do Arco de Almedina que impelira a sair. Os melhores seis meses da minha vida, diria eu: 6 meses em Roma, sem obrigações nem attachments.
Recordo- me que logo que regressei, na minha primeira noite depois de meses de ausência, esbarrei com a Estudantina, e dei por mim de lágrima no olho. Claro que nada comparado com o pranto das noites académicas no parque (na altura, ainda do outro lado da ponte) no ano em que fui quintanista. Lembro-me de ver a Pitagórica, com os seus autoclismos e as suas sanitas. Mas depois… depois veio a Balada da Despedida, e lembro-me perfeitamente de pensar que aquilo era o fim de uma era na minha vida. Só quem por lá passou de capa negra percebe o que estou a dizer.
Depois, uma paixão imensa pelo trabalho académico. Quando eu me preparava para enfiar uma mochila às costas e conhecer o mundo, já com um título no bolso, surge a oportunidade de ter aquilo que eu achava ser a melhor profissão do mundo: estudar. E ser paga para isso! Sei que as pessoas normais se apaixonam por seres humanos, mas eu tendo a apaixonar-me por trabalhos. E aquele foi um motivo ponderoso para ficar durante mais um par de anos. E quando a urticária das viagens, dos sonhos, da curiosidade por esse mundo lá fora começou a sufocar-me fiz as malas e parti.
Na verdade a tranquilidade e monotonia da vida na pequena cidade foi sendo interrompida ao longo dos anos com diversas escapadelas, umas de dias, outras de meses, outras ainda de anos. Da última vez que regressei a vida naquele cantinho torna-se um pouco mais insuportável. Ainda assim… porque terei ficado? Amarras pessoais.
Há quem não parta porque não tem para onde ir. Eu sempre tive tantos sítios para onde ir, especialmente aqueles onde nunca fui. Não parti porque tinha demasiados motivos para ficar. Quando todos eles desapareceram e só ficaram motivos para sair, então, fiz as malas e saí de vez.
Continuo a ir regularmente a Coimbra. O meu trabalho ainda é lá. E, de certa forma, grande parte da minha vida está lá presa. Os amigos mais próximos ainda lá estão. A maior parte das recordações da minha vida reporta-se a essa cidade. Fui feliz em Coimbra algumas vezes. Mas, acima de tudo, fui tremendamente infeliz. A verdade é que eu e esta cidade ainda temos algumas questões pendentes, que espero um dia resolver.
Como disse, viajo regularmente para Coimbra, e tento restringir-me ao percurso bastante limitado que liga a estação de comboios à universidade. Desenvolvo esforços imenso para evitar pernoitar. E, mais uma vez, quando sou forçada a faze-lo, tento passar o dia quase todo na universidade e chegar a casa à noitinha, pronta para ir dormir cedo, ansiosa por partir na manhã seguinte. Numa mais tive uma saída social em Coimbra. Evitei-as a todo o custo e agora apareceu-me como uma inevitabilidade. O que ira acontecer? Quem irei encontrar? Mais: como irei encontrar a cidade? E como irá ela encontrar-me a mim, que estou diferente, uma Vera tão diferente daquilo que um dia fui?
Diz o poeta que Coimbra tem mais encanto na hora da despedida. Verdade seja dita que para mim nunca teve muito encanto. Mas reconheço que sempre que partia sentia uma lágrima teimosa a escorrer-me pela face. Nunca mais a senti.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

O livro de reclamações, por favor


Há um par de meses atrás fui subitamente assaltada por uma epifania que, ao que parece, mudou a minha vida. Muitos de vocês conhecem o já famoso episódio da menina do bengaleiro e sua tromba, de modo que sabem do que estou a falar: do livro de reclamações. Sim, meus amigos, a vida em sociedade desenrola-se em torno destas duas palavras mágicas: livro e reclamações. A preposição destina-se apenas a especificar que não é um daqueles livros profundos e sem pontuação do Saramago, nem tão-pouco um daqueles livrinhos da Margarida a dizer que não há coincidências and so on and so on. Nada disso. É o livro das mágoas profundas de quem não é bem tratado pela Humanidade. A Bíblia ao pé disto é coisa para meninos.
Ainda recentemente tive oportunidade de testar de novo os inúmeros poderes deste livro sagrado.

Episódio da agência imobiliária: depois de meses com o meu pequeno T2 (onde nunca vivemos os 2, excepto eu e os inúmeros gatos e cães e povoaram a minha felicidade solitária) numa das imobiliárias da nossa praça, e depois de ter sido estúpida o suficiente para assinar um contrato de exclusividade com a dita, decidi que era altura de o rescindir, dada a ineficácia, ineficiência, incompetência e todas as outras coisas feias começadas em “in”, decidi, finalmente, ser altura de rescindir o dito contrato. Pois qual não é o meu espanto quando a voz do outro lado da linha telefónica me informa que deveria enviar uma carta a explicar os meus motivos e que eles decidiriam então se aceitavam ou não a minha rescisão. Eles? Os tipos do “in”? Uma vez que a voz me informou igualmente de condições contratuais que o “inbecil” (só para manter a linha do in) que me contactara inicialmente não me havia informado, e que certamente não estavam no papelucho que assinei, lá lhe pedi para me enviar uma cópia do contrato, já que havia perdido a minha na última mudança de casa. Surpresa: “Minha senhora, não consigo encontrar o seu contrato”. “Mas ele existe ainda?”, perguntei eu? “Na verdade não sei”, foi a resposta. Tentei explicar à senhora que não podia rescindir o que não existia e depois de complicações várias lá cheguei à fala com a responsável da loja que, finalmente, me prometeu enviar um documento escrito assegurando que qualquer eventual contrato que tivesse existido entre nós se tinha por rescindido. Como passadas 3 semanas o dito ainda não chegara, como os correios não estão tão mal assim, e como já nenhum responsável se chegava ao telefone para me dar um olázinho, optei por deixar com a secretária um gentil recado, com a voz mais melosa e sonsa que existe dentro de mim (ai, que sonsa que eu sei ser), agradecendo a gentileza mas explicando que, se no dia seguinte não tivesse a abrir a cartinha com as minhas mãozinhas, levantaria o meu rabinho da cadeirinha e iria à sede da agencia, ali mesmo na Expo, autografar o livro de reclamações. Desfecho da história: no dia seguinte as minhas mãozinhas abriram a tal cartinha, acabada de chegar em correio azulinho.

Episódio do WC: quando eu entro num café, não tanto pelo café, mas sim pela sanita que algures por lá há-de estar, fico verdadeiramente aborrecida por chegar à porta do quarto de banho e ler um aviso do tipo: “WC fora de serviço”. Sobretudo quando me custou imenso arranjar mesa e já antevia não sei quantos minutos a mais para chegar a outro café e ocupar novo espaço. De modo que fiz a tal cara de sonsa, mas deita feita misturei-lhe uns pózinhos de irritação, e perguntei ao senhor-empregado-segurança - um gigante extremamente educado mas com ar de quem não está para amizades - porque motivo tinham aberto o estabelecimento, se o quarto de banho, peça chave da coisa, estava fechado, ainda para mais num dia com tanto movimento (enfim, todos conhecemos o truque do “fora do serviço”). O mais bonito deste episódio é que nem precisei de falar no livro. A doçura vinda do meu 1 metro e 63 lá sensibilizaram os 2 metros de homem, que se prontificou a deixar-me usar o quarto de banho de serviço. Ou isso ou a forma como a pergunta foi feita, o ligeiro levantar de sobrolho que a acompanhou, e aquela pausa estratégica na voz, deixarem já adivinhar que a pergunta pelo livrinho estava ali mesmo, não ao dobrar da esquina, mas ao dobrar da frase.

Ora, tudo isto me faz pensar que outras potencialidades estarão escondidas neste mecanismo. Será que quando um amigo nos falha poderemos inscrever a respectiva reclamação ao Livros das Reclamações de Amigos? E quando for um namorado, não existirá também um Livro de Reclamações de Amores? Ou não será mais simples endereçar a dita à mãe do caramelo, responsabilizando-a pelas falhas na educação do rebento? Só espero que não exista nos contratos de maternidade nenhuma cláusula que as isente de tal responsabilidade.
Nesta linha, e em última análise, posso até reclamar de mim para mim, no meu livrinho íntimo de relações, fazendo queixa daqueles momentos em que eu próprio me torturo a mim mesma e torno a existência um inferno.
Nota do editor: devo dizer que este último livro está em branco (sempre me neguei a entregá-lo à clientela).

segunda-feira, 5 de abril de 2010

UMA QUESTÃO DE FÉ


Por altura da Páscoa católicos de todo o mundo celebram a ressurreição de Cristo. Porquê? Por uma questão de fé.
Dizem que a fé move montanhas. Estou em crer que não será bem assim. Primeiro, porque se o fosse as empresas de escavação entrariam todas em falência. Depois, porque eu própria me farto de ter fé na perda de 10 quilos no próximo mês e nunca tal aconteceu.
Não se depreenda das minhas palavras que sou avessa a ter fé. Pelo contrário, eu tenho fé em muitas coisas, mas admito que provavelmente acredito em coisas diferentes daqueles que usualmente nos vêm à cabeça quando falamos nestas questões. É que ter fé significa acreditar, ter esperança e depositar as nossas expectativas. Ora, não só de deuses e de deusas se faz a fé dos homens. A mim não me encontrarão certamente em nenhuma igreja, sinagoga ou mesquita, a não ser por motivos arquitectónicos ou de curiosidade cultural. Note-se que não tenho nada contra quem lá vai e se ajoelha para orar. Tento orientar a minha vida por um princípio de respeito geral. Agora, não me coíbo de exercer o meu espírito crítico, caso contrário seria uma anénoma. Ou seja, tento seguir um certo princípio da relatividade que não crie dogmas absolutos, mas tenho, obviamente, a minha opinião pessoal e um aguçado sentido de apreciação face aquilo que me rodeia. Por conseguinte, tenho obviamente uma opinião acerca de certas religiões. O que não invalida que eu não tenha a minha. Ou, melhor dizendo, as minhas.
Dizia Marx que a religião é o ópio do povo. Nesse caso, eu sou opiómana, porque sou uma pessoa religiosa. Não acredito propriamente em Deus, ou Buda, ou Alá, ou como lhe queiram chamar. Se uma pessoa está terrivelmente doente e se cura não acredito que tenha sido um milagre divino, mas um admirável feito da ciência, da medicina, , dos médicos. Se um perigoso pedófilo é condenado a 20 anos de prisão não atribuo esse acontecimento à justiça divina, mas sim ao engenho dos detectives que o apanharam e à eficácia do sistema judiciário humano. Se finalmente as nações em guerra conseguem assinar um tratado de paz não creio que tal se deva a uma inspiração dos céus, mas sim à boa-vontade humana. É que se assim não for, isto é, se atribuir a Deus o mérito por tais benesses, terei igualmente que o culpar pela morte daqueles que nos são queridos e que partiram demasiado cedo vitimados por doenças de incrível sofrimento, pela dor das crianças que perecem nas mãos de violadores e por toda a morte e destruição causada pelas guerras. A meu ver, o que de bom acontece deve-se à humanidade, mas também não me inibo de a responsabilizar – como quem diz, a todos nós – pela miséria, pela desgraça e pelo sofrimento. Mas, no geral, acredito no ser humano, na sua bondade e capacidades. Porque assim é, sou uma mulher de fé.
As pessoas fazem coisas estranhas pela sua fé. Nesta época pascal há quem não coma carne nas 6.º feiras da Quaresma na tentativa de ganhar um lugar no Céu. Há uns atrás podiam até comprar directamente a entrada com uma bula ou um indulto, mas agora os cofres da Igreja fecharam-se a esta espécie de suborno divino. Estranho? Nem por isso. Pelo menos se compararmos esta prática com o Ramadão muçulmano, com a circuncisão dos bebés dos judeus, com a repulsa por transfusões de sangue que marca os jeovás, ou mesmo com outra prática própria dos católicos, que consiste em arrastar os joelhos ensanguentados no caminho de Fátima. Ora, eu não tenha contra isto. Quem sou eu para condenar as convicções dos outros? Nada tenho a opor, pelo menos enquanto não envolverem outras pessoas nas suas crenças, e então passam a terrorismo religioso. Já me causa consternação, e mesmo repúdio, certos outros comportamentos associados às religiões, como sejam as cruzadas cristãs e a morte de supostas bruxas nas fogueiras; o conflito israelo-árabe; os ataques da Al-Qaeda. Mesmo a morte de uma criança devido à recusa dos pais em permitir uma transfusão de sangue nos deve fazer pensar até onde somos capaz de levar a nossa fé.
Em última instância todos queremos ir para o céu, seja lá o que isso for. O inferno (serão os outros?) é um lugar sombrio onde todos os nossos medos encontram abrigo. Por isso os católicos procuram um céu onde são recebidos por S. Pedro e voam com os anjos; os muçulmanos um céu povoado por 72 virgens para cada um (já agora, onde irá Alá buscar tanta virgem? Ao jardim-escola?); e podia continuar aqui ad infinitum a enumerar os vários céus possíveis se soubesse ao certo o que nos espera em cada um deles. Também eu procuro o meu céu. E nele os cartões de crédito são pagos com abracinhos e o chocolate não engorda.

sábado, 3 de abril de 2010

A LEVIANDADE DE DIZER QUE TE AMO


É incrível como as pessoas que julgamos mais sensatas e responsáveis abrem a boca para dizer que nos amam com a maior leviandade. Como se nos tivessem dito “fecha a porta” ou “está frio hoje”. Como se nada. Não sei se esperam que no dia seguinte nos tenhamos esquecido disso. Ou no ano seguinte. Ou na década seguinte.
Ainda hoje fico perplexa com a leveza com que se usam certas palavras. Não me refiro à mentira propriamente dita. Quero acreditar que as coisas bonitas que me têm dito ao longo destes anos não eram mentira, pelo menos que não o eram naquele momento. Que quem as disse acreditava piamente estar a ser sincero. Mas duvido que fosse aquele realmente o sentimento que lhes ia na alma. Um pouco como quando eu prometi à minha mãe que não faria mais nenhuma tatuagem: não menti descaradamente, não a tencionava enganar, mas uma parte de mim não estava bem certa de conseguir cumprir. Resultado: mais um dragão na perna.
A afirmação - sempre forte e assertiva – de que se ama alguém é uma das que mais leviana se tornou e, por isso mesmo, mais vazia. É que amar não é o mesmo que gostar. Eu gosto de gelados e de bolas de Berlim. Não os amo porém. Não seria capaz de partilhar a minha vida com um corneto, muito menos de dar a vida por uma taça de creme de pasteleiro. Desconfio que a confusão entre gostar e amar se deva ao “I love you” que povoa a nossa linguagem desde que vimos na televisão o primeiro filme de Hollywood. A partir daí “lovamos” tudo, desde os nossos jeans preferidos até à Coca-Cola, passando por pais, amigos e namorados. Acontece que na língua portuguesa o amor é um sentimento que vai para além da preferência, do gosto ou mesmo da paixão.
Como trabalho com palavras tenho o maior dos cuidados no momento de as utilizar. São a minha arma, o modo como enfrento o mundo. Há quem cante (já aqui confessei ter sido eleita a pior cantora do planeta), quem desenhe (eu fico-me por uns rabiscos nas margens das folhas), quem corra (restrinjo essa hipótese à necessidade de chegar a tempo a uma loja prestes a fechar), quem dance (aqui faço o gosto ao pé… e ao rabo…. a bem dizer, a tudo), quem cozinhe (digamos que nunca conquistarei um homem pelo estômago). Pois bem, eu escrevo e falo. Estejam certos que quando utilizo uma palavra nunca o faço por acaso ou de forma irreflectida. Por isso me custa tanto compreender que se delas se faça um mau uso. Dizer que amamos alguém que conhecemos na semana passada é o mesmo que usar sapatilhas com o vestido preto cintado. Não conjuga. Posso até acreditar em amor à primeira vista, mas não é à segunda vista que se sabe que se ama. Apenas passadas muitas vistas nos apercebemos disso e eventualmente até concluímos que tudo sucedeu logo na primeira. Mas essa resposta chega bem mais tarde.
Tão-pouco funciona dizer em voz alta “amo-te” para nos persuadirmos disso. É que se pode querer com todos as células do corpo amar alguém, mas se o coração não bombeia para esse alto de pouco serve gritá-lo em voz bem alta. Só vamos conseguir fazer ruído. E, pior do que isso, não nos convenceremos a nós, mas convenceremos o outro de que assim é.
Por isso não digam nada. Remetam-se ao silêncio. Vão gostando. Vão estando. Vão curtindo a pessoa. Mas se um dia a amarem, aí, digam-no. Porque o pior que pode acontecer é ela nunca vir a saber disso.