quinta-feira, 17 de junho de 2010

Afinal, o Pai Natal não existe


Nunca acreditei no Pai Natal com aquela certeza com que se acreditam nas coisas quando temos 5 anos. Não que tenha sido uma criança precoce nesse sentido, mas acho que a minha veia materialista me ajudou a perceber desde cedo que quem comprava as Nancy’s (naquele tempo não havia Barbie’s) era a mamã. Mas se eu tivesse acreditado com firmeza no Pai Natal, e se um dia tivesse descoberto que afinal o único senhor velho e barrigudo da minha curta vida era o avô, certamente teria entrado em colapso nervoso. Porque é isso que acontece quando as nossas convicções mais profundas caem por terra.
Uma dessas convicções bem arreigadas entre os ventrículos e aurículos do nosso coração é a confiança que depositamos nos outros. E utilizo aqui o termo depósito no sentido próprio e jurídico da expressão, perdoem-me o que não são de direito. Diz o art. 1185.º do Código Civil que o contrato de depósito é aquele pelo qual “uma das parte entrega à outra uma coisa, móvel ou imóvel, para que a guarde, e a restitua quando for exigida”. É disso mesmo que aqui se trata. Entregamos a alguém a nossa fé, a nossa lealdade, a nossa honestidade, em suma, o nosso coração, com a condição desse outro alguém restituir tudo isto (que não é coisa pouca) quando as circunstâncias ditarem a sua exigência. Que circunstâncias são essas? Nomeadamente, a perda da confiança. A quebra do elo. O fim.
A traição é como uma lâmina aguçada a espetar-se em nós. A primeira vez que tentei descrever esta dor saiu-me “a traição é como um tiro”, mas depressa percebi que isso sabe a pouco. Não que alguma vez tenha sofrido algum destes desastres. Mas no meu imaginário, feito de muitos filmes, um tiro é uma coisa rápida, bem mais indolor do que a lenta agonia de sentir a lâmina a espetar-se na carne. Quando a pessoa que nos atraiçoa é um amigo próximo, daqueles bem próximos, daqueles que são quase como uma parte de nós, é ainda pior, porque é como se a lâmina estivesse ferrugenta.
Depois de quebrada a confiança dificilmente ela pode ser restaurada. Todos somos livre de violar os nossos compromissos, não podemos é depois esperar que a contraparte deseje novamente comprometer-se connosco.
Gostar de alguém é acreditar. Em muita coisa, em grande parte coisas impossíveis. Mas acreditamos. Acreditamos que vai durar para sempre, que vamos ser respeitados e amados. Em regra, não dura. Mas a fé estava lá, fundada nesse laço de confiança que criámos que aqueles que nos cativam. E cativar alguém traz consigo uma grande responsabilidade, já dizia o Pequeno Príncipe. De velar pelo outro, de cuidar dele, de o proteger de todos os males no mundo. Quando tudo isso desaparece fica apenas uma cratera.
Perante este cenário dantesco a única opção é pedir a restituição, nas suas devidas condições, daquilo que entregámos em depósito. Queremos o nosso coração de volta. E não é que às vezes eles não no-lo entregam? Ou o entregam já defeituoso, cheio de buracos e carcomido?
Se o Pai Natal existisse o que eu fazia era pedir-lhe um coração novo. “Querido Pai Natal, podes por favor colocar no meu sapatinho, no próximo Natal, um coração novo para eu poder amar?” Só há dois problemas com esta minha solução. Primeiro, falta muito para o Natal, e até lá eu preciso de um coração que bombeei sangue para o meu 1,63 m de corpo. Depois, o Pai Natal não existe.

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