terça-feira, 4 de maio de 2010
O que é que a menina da burca tem?
Toda a gente quer saber o que é a baiana tem. Porque a menina da Bahía remete para tudo o que é delicioso e sensual na vida, para praias quentes de areias douradas onde se bebe leite de coco ao som de um sambinha.
Em compensação, ninguém tem o mínimo interesse pela senhora da burca. É que o corpo escondido por trás das vestes recorda-nos precisamente o oposto da baiana: fanatismo religioso, morte, destruição, terrorismo. E dominação da mulher também. Dificilmente se pode negar que esta é uma ideia intimamente associada à mulher de rosto tapado, não apenas pelo nosso imaginário ocidental e cristão mas corroborado pela realidade dos factos.
Sucede porém que se esta fosse a única preocupação que move os políticos europeus e os impele a proibir o uso da burca nos respectivos países muitas outras coisas teriam que ser proibidas, por castradoras da mulher e atentatórias da sua dignidade. E, pasme-se, nem todos se reportam à religião islâmica. Não é vil que nas sinagogas as mulheres se sentem num local diferente dos homens? E porque casam de branco as noivas cristãs, a demonstrar a sua suposta pureza, ao passo que aos noivos podem ir de qualquer cor porque, afinal, não têm que ser necessariamente castos?
O uso – ou não uso - da burca é uma opção tão legítima quanto a das mulheres que decidem ir para freiras e entregar a sua vida a Deus. Não é uma opção, mas uma imposição? Bem, mas nesse caso o problema não se prende com a burca, mas com relações familiares altamente deturpadas e hierarquizadas em torno da figura masculina. Relações essas que nem sequer são apanágio de determinada religião, mas sim de visões do mundo que não mudam pelo facto de se despir uma burca.
É que para além dessas mulheres que são efectivamente forças a esconder-se existem aquelas outras que o fazem por opção, porque assim se sentem bem e consideram ser esta a postura mais digna que podem assumir. Algumas são mulheres educadas ao estilo ocidental que certo dia acharam que deviam procurar um novo rumo e uma nova posição no mundo. Não estou com isto a dizer que concordo. Estou simplesmente a sublinhar que também me incomodaria bastante que alguém viesse em meu salvamento porque uso saltos altos e assim me deixei dominar pelo sentido estético masculino, fazendo de mim uma vítima dominada. Vão-me certamente dizer que muitas dessas mulheres que assim se vestem voluntariamente foram alvo de uma lavagem cerebral que lhes confundiu as prioridades e as leva a fazer coisas estranhas pensando que são normais. Provavelmente assim foi, assim como provavelmente também nós fomos programadas para passar fome até caber em bikinis minúsculos aptos a satisfazer as fantasias masculinas, a esfregar-nos semi-nuas em varões e a gritar de prazer ao som de palmadas no rabo. Não é uma crítica. Apenas um questionar da legitimidade de umas para criticar outras.
E se queremos levar o assunto para a questão da violação da dignidade da mulher, que dizer da bimba que vi há dias num jantar, mamas postiças, cabeço postiço, pestanas postiças, qual Barbie de carne e osso atrelada ao fulano como se fosse o troféu que o tipo ganhou por conduzir um Porshe?
Claro que no caso de crianças a situação toma contornos diferentes. Mas, tanto quanto sei, ainda cabe aos pais a liberdade de educar os filhos dentro das suas crenças e convicções pessoais. Desde que, claro está, com isso não coloquem em perigo a sua vida ou a sua integridade física, o que exclui desde logo excisões femininas e recusas de tratamentos necessários porque impliquem transfusões de sangue. Curiosamente, a circuncisão masculina, provavelmente por não implicar consequência negativas no futuro, tem passado incólume pelo aro da critica, conquanto se trate de uma intervenção corporal grave e irreversível em menor, sem que daí advenha beneficio algum. Sempre resta a ressalva dos tais poderes-deveres dos pais não lesarem tão-pouco a dignidade da criança. Mas, caramba, será a burca tão mais perniciosa do que certos cortes de cabelo que se fazem aos putos, ou do que vestidos de cetim cor-de -rosa repletos de folhos, internamentos em colégios católicos onde aprendem coisas que não lembram ao menino Jesus (nem falo de outras coisas que supostamente se lá passam), peregrinações a castings de novelas, e outros que tal?
Depois emerge um argumento mais pragmático, segundo o qual, por questões de segurança, é necessário ver o rosto das pessoas de modo a poder identificá-las em caso de necessidade. Vamos lá então proibir todos os actuais mandamentos da moda que descaracterizem o rosto humano (piercings por toda a face, tatuagens de rosto inteiro), bem como chapéus, lenços na cabeça, perucas, óculos escuros, excesso de maquilhagem. Ah, e não esqueçamos a plásticas ao nariz, o botox na testa e o silicone nos lábios. É que eu se vir a Manuela Moura Guedes na rua sem saberei dizer se é ela.
Ser feminista é acreditar na igualdade entre homens e mulheres, e conceder a todos o mesmo poder de escolha. Não é, de todo, arvorar-se em salvadora da pátria e das oprimidas, fustigando-nos a todos com visões do mundo supostamente emancipadoras, que caem no paternalismo do “eu é que sei o que é melhor para ti”. Poupem-me. Poupem-nos a todos. E se há muito ainda para fazer em prol das mulheres islâmicas, não creio que esse muito passe pela proibição da burca.
Agora, caríssimos, tudo isto só será assim se eu, quando pisar o meu pezinho numa das terras de Maomé, possa usar os meus caracóis ao vento e as minhas pernocas ao léu. É que o respeito pelas culturas e pelas religiões exige correspondência. Eles querem rezar virados para Meca? Pois eu quero entrar na minha Igreja. Eles querem tapar cada milímetro de pele? Pois eu quero apanhar sol. Até sou bastante compreensiva com as taras e manias de cada um, mas que o sejam também com as minhas, de modo que enquanto os países islâmicos impuserem as suas regras de conduta (de vestimenta, de alimentação) aos visitantes, deixa de me chocar a mim que se lhes imponham a eles as nossas enquanto viverem entre nós. Se nos exigem que na Arábia sejamos árabes tenho para mim que não seremos porcos racistas em exigir que na Tuga sejam tugueses.
Ou será a liberdade de estar na vida um valor de sentido único?
O que é que a senhora da burca tem? Tem sem dúvida o direito a ver respeitado o modo como se cobre, tal como eu tenho o direito a ver respeitado o modo como me descubro.
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