quinta-feira, 27 de maio de 2010

O amor ou a “xavi”?


A nossa existência terrena é dominada por chaves (e a não terrena também, porque afinal o que o suposto S. Pedro segura na mão é a chave do suposto céu). Vivemos em pavor de perder a chave de casa e ter que chamar os bombeiros, não vá ser que nos apareça um moço daqueles altos, fortes e espadaúdos que preenchem calendários por esse mundo fora. Guardamos religiosamente a chave da casa da amiga que nos pediu que ficássemos como salvaguarda de um eventual incidente de “fiquei fechada fora de casa em pijama”, com terror imenso de que esse dia chegue e, das duas uma: ou não estamos lá para gozar o prato, ou estamos, mas sem a chave, que entretanto perdemos. Atulhamos a mala de milhentas chaves: chave da casa dos pais, chave da casa dos amigos mais íntimos, chave do carro, chave do cacifo do ginásio, chave do escritório, chave das gavetas do escritório, chave da garagem, chave da caixa do correio e, se tivermos jogado bem os dados, a chave da casa dele.
E é aqui que eu quero chegar. à chave da casa dele.
Há décadas atrás, uma senhora de voz estridente gritava em pleno prime-time televisivo: “O dinheiro ou a “xaviiii”?” E o público – imagine-se quem ia assistir a estas coisas – gritava, ora pelo dinheiro, ora pela “xavi”. E eu, do alto da minha infância, percebi que as chaves ocupavam um posto primordial na vida das pessoas.
O culminar dos variadíssimos incidentes envolvendo chaves é mesmo aquele momento em que pensamos para com nós próprias: “Ora bem, esta coisa já dura há tempo suficiente para se chamar namoro, já partilhámos leito, tecto, pratos e fluidos, de modo há que dar o próximo passo e oficializar o amasso. De que raio está ele à espera para me dar a chave de casa?”
Há quem pense que este é um acto redundante. Pois se as casas têm campainhas e as pessoas têm telemóveis não se vê vantagem em ter uma chave que, provavelmente, nunca usaremos, especialmente aqueles de nós que se pautam por um mínimo de respeito pela privacidade dos outros.
Mas, lá está… isto é a parte racional de mim a expor o assunto. Porque a outra parte, a emocional, essa quer desesperadamente a chave que simboliza uma qualquer forma de formalização de uma coisa que, por mais modernas e liberais que sejamos, carece de uma base fáctica que sustente as expectativas de uma vida em comum num futuro próximo. Aquele pedaço de metal não é, apenas, uma chave meus senhores. É uma garantia de proximidade existencial. Uma hipoteca do espaço do coração dele que aspiramos a que seja nosso. Um indicio da confiança que tem em nós. Um sinal de que não estamos a perder tempo com mais um tipo que só nos telefona quando não tem mais nada que fazer. Uma amostra do que podemos almejar da relação. Uma certificação de uma relação que de facto já existe, pelo menos para nós e para ele, mas que desejamos esfregar na cara daquela vizinha intrometida que anda sempre de shortinho e top. Uma tomada de posição perante a família e os amigos, a dizer “cheguei, vi, venci, e agora posso abrir a porta sozinha”. Uma promessa de dias felizes, em que dividamos contas e conta corrente. Um acto de fé em mais um ano juntos. A chave é, no fundo, a tal “xavi” que prometia delicias insuspeitas.
Admito que para os homens este é um detalhe de somenos. Mas, como bem sabemos todos (nós, porque já nascemos a sabe-lo; eles porque aprenderam da pior forma), as mulheres adoram detalhes. Na verdade, tudo se resume a detalhes: o berloque de um sapato, a bainha de uma saia, o tamanho das pétalas de um ramo de flores, as toalhinhas perfumadas no quarto de banho do restaurante. Detalhes. E a chave é um desses deliciosos pormenores capaz de uma mutação total na relação que entretanto estagnara.
E, sobretudo, evita-se aquele momento embaraçoso em que chocamos com algum outro morador à porta do prédio, daqueles que estão fartíssimos de nos ver por lá, e temos que empatar tempo (já sabem: conversas fictícias ao telemóvel, esgravatar na mala fingindo procurar uma chave fictícia) até que o dito vizinho saque da sua chave e se decida a abrir a porta antes de descobrir que nós entramos à socapa. Evitam-se as perguntas impertinentes de amigas: “Então, ele já te deu a chave?”, perante as quais somos forçadas a inventar a desculpa da relação aberta, do respeito pelo espaço de casa um, etc e tal. Já para não falar das súbitas mudanças de planos só para não chegar a casa dele demasiado tarde face àquilo que seria aceitável exigir de um ser humano que se tem que deitar cedo e acordar cedo, de modo que o toque de campainha está completamente excluído.
Depois, a chave serve também para marcar o final de uma era. A única vez que fui a feliz possuidora da chave da casa de alguém foi exactamente a entrega da chave o acto que escolhi como sendo o sinal de que havíamos chegado a um ponto de ruptura sem retorno. Quando ainda não existe casamento a devolução das chaves aos respectivos proprietários funciona quase como a assinatura dos papéis de divórcio. Já não há volta atrás. Enquanto esse momento não chega sempre poderemos marcar um café daqueles que servem para decidir o destino e entrega das chaves e, en passant, falar da relação, quem sabe retomá-la, com o argumento de que, afinal, “ainda tens a chave lá de casa”.
Nunca cheguei a perceber se a minha opção seria escolher o dinheiro ou a “xavi”. Nem alguma vez no campo amoroso se me colocaram as coisas nestes termos. Mas posso garantir que naquele momento em que fiz força nos dedos até ficarem roxos de forma por forçar a boa da “xavi” no meu porta-chaves senti-me como a Alice prestes a abrir a porta do País da Maravilhas.

4 comentários:

  1. Há situações que configuram verdadeiras bizarrias em torno deste assunto. Há três anos estive para saltar fora de um relacionamento, o que só não veio a suceder mediante um esforço titãnico de parte a parte, porque a pessoa com quem estava, e que só tinha tido um parceiro desde a incipiência , achava normalíssimo que o dito ex, dois anos depois de ter saído de casa, ainda tivesse a chave da mesma, onde por acaso já eu morava, não tendo ainda "direito" a usufruto de uma cópia... como justificações apresentou-me na altura "que não tinha mal nenhum, quem vê mal nessas coisas é doente e paranóico" e ainda que "ele sendo pai do meu filho pode precisar de ir lá buscar umas meias"... O Bruce Charlton escreveu um artigo bastante bom sobre estes "clever sillies" que intelectualmente possantes não conseguem embora ter uma visão pragmática e com empatia sobre o mundo dos outros.

    Bom, deveria ter descoberto este blog a horas menos impróprias, tenho uns assomos de comentar tudo o que encontro.

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  2. O momento da entrega da chave marca a mrote de uma coisa que desapareceu e já não volta, por mais bonita que tenha sido ou por mais que desejemos o seu regresso.
    Adiar - ou mesmo evitar - esse momento demonstra apenas que não sabemos lidar com as perdas. O curioso é que eu lido muito mal com as ditas, mas sou a primeira a entregar a chave.

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  3. A chave:
    substitui várias coisas numas relação:
    A antiga aliança de namorados.
    A assinatura do divorcio.

    Representa a esperança:
    A esperança de que isto que temos vai durar.
    A esperança de que enquanto ele/ela não devolver a chave, talvez ainda volte.

    mas para mim é apenas um acto de confiança, confio o suficiente em ti para partilhar o meu espaço contigo e deixar ao teu critério quando é que o queres usar.

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