quarta-feira, 12 de maio de 2010

Graças e desgraças na corte de um Estado laico


As ruas ficaram desertas de carros e do atavio daqueles que correm para o trabalho, mas em compensação encheram-se de polícias. Do céu chegava o som ininterrupto de um helicóptero, quase fazendo crer que estávamos numa espécie de Cabul. Parte dos metros e dos autocarros desapareceu do mapa de quem devia chegar ao emprego. Aliás, os empregos do Estado desapareceram por um dia. A cidade parou. Quase se diria que Jesus Cristo em pessoa desceu à terra e logo aqui em Lisboa. Mas não, é só o Sumo Pontífice da Igreja Católica que decidiu dar um ar da sua graça por terras neste cantinho do mundo. Isto, se ele tivesse graça alguma.
Não sou católica. Já o disse várias vezes, a propósito de várias coisas. Tenho cá a minha fé: em mim, em vocês todos, nos saldos, em cremes contra a celulite, num Sporting campeão, e até há dias em que acordo com uma fé num ser superior e transcendente. Não lhe chamo Deus. Não lhe chamo nada porque não sei que nome tem. Se calhar é mesmo Deus e ainda não dei por isso.
Mas não tenho nada contra as várias fés, nem contra católicos em particular, nem contra o menino Jesus, nem contra o Papa. Verdade seja dita que este senhor Ratzinger não me caiu no goto. Nem é por causa do suposto passado nazi, nem do suposto encobrimento aos casos de pedofilia, porque ainda não tive comprovação alguma de que tudo não passasse de um testemunho de ouvir dizer. Digamos que é uma antipatia pessoal, sem razão fundada que não seja a total ausência de empatia. Se João Paulo II despertava em mim aquele carinho de quem recorda um avô, este senhor faz-me pensar em… nada, diria mesmo.
Diz quem sabe que é uma cabeça brilhante, um fantástico pensador, em suma, um grande intelectual. Vamos partir do princípio que assim é, na vã tentativa de tornar este circo menos ridículo. Suponhamos - e é meramente um “suponhamos” (adoroooooo!) - que o nosso Portugal tem o privilégio de receber por estes dias uma das grandes cabeças do nosso tempo. Mas será a primeira vez que temos entre nós um dessas mentes iluminadas que nos fazem ouvi-lo e lê-lo incansavelmente? Quando Gabriel Garcia Marquez visitou Portugal não creio que o Governo tenha concedido tolerância de ponto a todos o que são apaixonados pelos seus livros. Nem me parece que o governo português tenha colado milhares de painéis a dizer que “eu aprendi a pensar com Sarte”.
Ou será que este circo todo se deve ao facto de se tratar de um Chefe de Estado? Mas nesse caso resta explicar todas as honras de Estado concedidas a este e não aos demais.
E é isto… Fora estas duas razões não vejo outra que possa justificar tamanha veneração. Certamente não será pelo facto de o senhor ser chefe de uma Igreja, porque da última vez que vi ainda estávamos num Estado Laico. A não ser que o mesmo suceda na próxima visita do Dalai Lama, e já estejam as nossas televisões a preparar cobertura total das honráveis palavras do líder religioso dos budistas.
Compreendo que um par de milhões de portugueses vê na visita papal o ponto alto da sua existência, e que deixarão tudo em troca de uma bênção que os faça esquecer a miséria (humana, de valores, de comida), a crise, a solidão. Todos temos as nossas crenças profundas e nenhuma é melhor do que a outra. Já não compreendo que sejamos todos nós a pagar do nosso bolso os presentes que o senhor Ratzinger vai receber, os aviões e helicópteros onde vai andar, e, sobretudo, não me entra na cabeça que um país que se está a fundar se dê ao luxo de parar de produzir por um dia. Quem quer ir ver o Papa tire um dia de férias do trabalho. Tal como eu faço quando preciso de ir ao médico, ou quero fazer uma viagem relaxante, ou simplesmente ir às compras.
É bem verdade que provavelmente precisamos de uma réstia de esperança que nos ilumine para acreditar que dias melhores virão. Essa dita restiazinha pode chegar-nos de vários sítios: da vitória benfiquista (outra religião esta, com Catedral e tudo), de lutas politicas, de um bom livro, da bênção papal. A maior parte destes momentos de afirmação colectiva de valores custa dinheiro ao erário público. Basta assistir a um jogo de Futebol para perceber que todo aquele espectro armado não cai do céu mas sim dos impostos que pagamos. São, por assim dizer, custos da vida em sociedade e do respeito e equilíbrio pelas diferentes convicções e por aquilo que custa concretiza cada uma. Só transformando-me numa eremita poderia garantir que a minha sociedade individual era gerida a meu bel prazer, sem risco de suportar os custos gerados pela existência do Outro. Mas tudo tem um limite. Parar uma cidade, parar um país, parar a vida de todos nós que pouco nos revemos num senhor de branco que a muitos nos suscita dúvidas, isso, é ultrapassar os limites do bom senso e do respeito.
Não me recordo de campeonato, cortejo, festival, manifestação, festa, ou outra coisa qualquer que tenha paralisado o país com tão grandes repercussões na vida de cada um de nós.
Os católicos querem o papa em Portugal? Paguem eles por isso. Querem assistir à missa? Deixem eles de trabalhar e assumam as consequências desse acto.
Ainda hoje ouvia uma senhora, que fez questão de frisar ser católica, que se lamentava porque devido às limitações nos transportes o marido não conseguiu ir trabalhar e teve que meter um dia – forçado – de férias. Assim como todos aqueles cujos filhos frequentam escolas públicas e que não tiveram onde os deixar, os que os obrigou a ficar em casa. Quando o Governo apresentou o PEC e falou em sacrifícios pessoais referia-se a isto também.
O Cristo Rei deve andar doido com tamanha confusão…

2 comentários:

  1. Pelo menos acabaram as obras no Terreiro do Paço. Foi preciso Papa!
    Mas já vi o país parado por bem menos (melhor, já não anda há muito)!

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  2. Por ainda menos? Estás a referir-te a festivais de canção? ....

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