
Sou um daqueles seres menos desenvolvidos que ainda têm dentes do siso a encher a boca e, para meu mal, a provocar sérias dores de dentes.
Ontem mesmo preparava-me para tirar outro desses pedregulhos da minha boquinha, mas o dentista explicou-me que não o poderia fazer dado que a coisa estava tão complicada que só no hospital, para o caso de surgir alguma complicação. Penso que quando na mesma frase se juntam as palavras “hospital” e “complicação” a empreitada não se antevê fácil, de modo que decidi para com os meus sapatos (que botões uso pouco) viver com ele enquanto o danadinho não decidir pedir o divórcio da minha gengiva.
Parece que cerca de 99% por cento das criaturas da espécie humana conservem ainda estes resquícios do tempo em que vivíamos nas cavernas e comíamos mamutes. Os restantes 1%, bem, esses, são seres superiores que conseguiram prescindir deles. Mais perfeitos. Os seres humanos do futuro.
O que leva a questionar: para além de não terem dentes do siso, que outras características terão estes post-humanos? Será que ainda cospem no chão? Será que fecham a porta na cara da quem vem atrás? Será que se coçam em público, particularmente nas partes baixas? Será que os espécimes masculinos já aprenderam a mudar uma fralda, a respeitar e tratar como igual as suas companheiras e recordar-se das datas especiais? Será que os espécimes femininos já conseguem mudar um pneu, pagar as suas próprias contas e deixar-se de chantagens emocionais? Será que já aderiram ao banhinho diário? Será que se deixaram de pulseiras de outro e crucifixos ao peito? Será que na parte traseira do carro ainda usam almofadas de cetim e chapéus de crochet para esconder o papel higiénico? E por falar em carros, será que já ultrapassaram a moda dos carros tuning? Será que ainda deixam crescer a unhaca do dedo mindinho para propósitos que nem ouso antever? Será que falam ao telemóvel no cinema? Será que mastigam de boca cheia, e fazem questão de abrir a goela para que os circundantes possam ter uma bela vista de restos de comida semi-triturada? Será que aproveitam o guardanapo para se assoarem? Será que se regozijam com o sofrimento alheio, seja humano seja dos outros animais? Será que ainda ficam tribalmente violentos nos estádios de futebol? Será que subjugam os que têm uma diferente cor de pele?
Não pode ser um mero dente – ou melhor, quatro meros dentes – a fazer de nós seres mais evoluídos. Claro que sempre se pode dizer que esta nota nos afasta mais dos animais e nos distingue da pura besta carnívora. Mas, pergunto eu, serão os (outros) animais necessariamente menos evoluídos do que nós? Nunca ouvi dizer que uma rebanho de ovelhas tivesse bombardeado outro rebanho por questões religiosas, nem tão-pouco que ande por aí a vaguear um gato dealer que trafique substâncias ilícitas que mata milhares de gatos, inclusive gatinhos, e muito menos que algum hipopótamo incompetente e corrupto que trabalhe numa empresa pública onde chegou devido ao nome de família e aos enredos dos jobs for the boys, caindo anualmente na sua conta bancária mais de um milhão de euros. Nem alguma vez me chegou aos ouvidos que haja vacas que morram de fome para poder caber em bikinis ou que alguma escaravelha teime porque teime em ter viagens pagas com o dinheiro dos contribuintes entre o Parlamento e o Paris das escaravelhas.
Hás uns anos atrás alguém perguntava, num momento que ficou célebre, “e o burro sou eu?”
Bem, não antevejo semelhante momento de celebridade, mas acho que a pergunta que se impõe é esta: “e os humanos somos nós?” .