quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Caixa Negra



Por motivos que me escapam, aos olhos masculinos desenha-se uma estreita ligação entre o corpo feminino e o mundo da aviação. Como se fizéssemos todos parte de um gigantesco Top Gun, take my breath away e raio que o partam (não desdenhes miúda, que há mais de uma dezena de anos, quando viste o filme, choraste baba e ranho, e ainda és bem capaz de ter nutrido um ou outro sentimento mais malicioso pelo anão Cruise), os espécimes masculinos gostam de olhar para nós como se fossemos uma qualquer espécie de máquina. Desde o corriqueiro e brejeiro “pareces um helicóptero, que gira e b/voa”, até ao comentário ligeiramente (ligeirissimamente mesmo) mais elaborado, que nos compara a um avião (imaginem o que é ouvir o tio do nosso melhor amigo “segredar-lhe” em alta voz isto ao ouvido… e nós ali ao lado… a ouvir), tudo gira em torno de hélices.
Em suma, no universo masculino, nós somos, basicamente, aviões.
Logo, pus-me a pensar: se os braços e as pernas são um avião que levo regularmente ao ginásio para manutenção, será o meu cérebro a caixa negra?
Afinal, também nós registamos tudo o que se passa connosco. Enfim, tudo não. A memória humana é maravilhosamente selectiva. Direi antes, estupidamente selectiva, porque em boa verdade apaga tanta coisa que deveria guardar consigo para o resto dos seus dias e esquece as coisas importantes. Em contrapartida, é capaz de guardar nos mais recônditos cantos do cérebro pormenores que não interessam a ninguém.
Será que quando me encontrarem, depois do desastre que se anuncia ser a minha vida, irão em busca dessa preciosa caixa negra, e poderão ouvir as últimas palavras que ecoaram nos meus ouvidos? E aquelas mais importantes? E as mais duras? E as que mais me magoaram? Será que daqui por uns anos o meu cérebro estará ligado a uma máquina, no meio de um grupo de técnicos e peritos vários, a esmiuçar tudo o que disse e o que me foi dito, e a fazer relatórios desta novela que é a minha vida?
E se eu sou um avião, quem me pilota? Serei eu o comandante? Ou será que não passo do co-piloto, e já passei o comando a alguém, que agora me comanda a seu bel-prazer? A um pirata do ar, talvez? Pior ainda: será que eu sou uma mera hospedeira de bordo da minha própria vida?
Que tipo de mercadoria levo comigo? Coisas boas? Coisas más? Coisas proibidas? Não deveria ter mandado abrir a mala antes de a mater cá dentro, isto é, ter analisado bem as situações antes de me meter nelas, ter avaliado melhor as pessoas antes de as ter convidado a entrar na minha vida? Da próxima vez que alguém se aproximar de mim faço-o passar antes na alfândega, ou submeto-o ao detector de metais ou, melhor ainda, peço-lhe para ser farejado por daqueles cães que encontram tudo: coca, bombas, e com sorte, vibradores escondidos em malas inocentes.
Será que tenho andado a aterrar onde não devia? Será que tenho aterrado sem a devida autorização da torre de controlo? Cá para mim eu e a torre não andamos a comunicar nas melhores condições. O controlador aéreo fala-me em “Alpha”, “Bravo”, “Charlie”, “Delta”, e sucede que eu não domino o alfabeto fonético, de modo que pareço uma barata tonta, para frente e para trás em espaço aéreo inimigo, e a sobrevoar zonas proibidas, para depois ser forçada a aterragens perigosas em solo estrangeiro e inclinado. O que me estranha é como é que eu ainda não parti uma asa…
Mas um belo dia ainda aterro com o focinho no chão. Ou parto mesmo a tal asa. Ou expludo no ar. Ou, simplesmente, perco-me para sempre no Triangulo das Bermudas. Espero que nesse dia haja ao menos um alguém que tenha curiosidade em encontrar a minha caixa negra e saber o que se passou comigo e como voei neste vida.

3 comentários:

  1. Vera, deixa o avião voar, que ele sabe para onde vai! E no caminho, aproveita para ler "Um" de Richard Bach, nessa onda dos aviões...vai-te mostrar onde andam esses mundos do" e se...?"

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  2. Vou então experimentar a ligar o piloto automático para ler descansadinha o livro.
    "E se" me levar para longe dou a viagem por bem empregue.

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  3. Posso entrar? Não tenho nada a declarar!
    Afinal tenho, escolha bem o livro para a viagem, quando são de bons rapazes dão me cabo dos nervos!!!

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