domingo, 20 de fevereiro de 2011

Filhos de um Deus menor


Ontem à tarde, enquanto pedalava desenfreadamente no ginásio, na fugaz ilusão de matar as calorias que tomaram o meu corpo de assalto, olhei para o ecrã da televisão que nos tenta distrair das dores musculares (e de alma, diga-se de passagem). Na SIC passava um documentário sobre a corrupção em África, mais propriamente no Quénia e na Serra Leoa. Nada de novo até aqui. Mas nunca é demais recordar. Recordar que há famílias que vivem em espaços do tamanho da minha casa de banho, mas… sem casa de banho. Que estas cabanas se ergueram no meio de dejectos humanos, onde a única água disponível é a que escorre em esgotos imundos e a luz apenas a do sol ou a das velas. Que há quem tenha que escolher a qual dos filhos vai dar pão naquele dia. Que em certos países até para conseguir trabalhar um dia é necessário subornar alguém, de modo que dois terços do salário com que supostamente se iria alimentar os filhos acabam por encher os bolsos de pessoas que vivem da miséria de quem os rodeia.
Como dizia, nada de novo. Para mim, sobretudo. Depois de um par de anos em Angola posso dizer que estes olhos viram coisas inimagináveis. A miséria humana na sua forma mais crua. Não somente a material, a que mata o corpo, mas também a miséria de valores, que mata ainda mais. Os meninos da rua apontavam uma arma por um par de ténis. Um deles entrava sempre comigo no supermercado para que eu lhe comprasse leite em pó para o irmão bebé. Tinha alunos que iam para as aulas nocturnas sem jantar porque as propinas da universidade não deixavam dinheiro para o pão. Um menino com o corpo queimado fez-me festas no cabelo (no cabelo de oiro, dizia ele), porque supostamente eu seria um anjo que tinha vindo do céu para o levar dali para fora e o tirar daquela vida para um mundo melhor. Muita coisa vi eu em Angola. De algumas nem consigo falar, mas não esqueci. Nem quero esquecer. E também não esqueço como, a certa altura, já tudo aquilo me parecia normal. A violência, a morte, a dor, o sofrimento, passaram a fazer parte da minha vida. Ou eu parte de uma outra vida, nem sei bem. É incrível o quão rapidamente o ser humano se habitua às coisas, por mais pérfidas que sejam.
Mas ainda assim, ali estava eu, quase surpreendida, suor a escorrer-me pela testa, porque queria perder os pneus que ganhei com toneladas de comida. Nem falo de tudo aquilo que foi para o lixo. Nem de todo o dinheiro gasto em presentes que provavelmente nunca vão ser usados. Nem da conta que acabara de pagar numa loja de meias , só pelo prazer de ter colantes de trezentas e oitenta cores e feitios, cujo montante daria para alimentar uma daquelas famílias durante um mês.
A vida é, realmente, muito fácil para nós. Haja dinheiro para pagar as extravagâncias que o cérebro humano se lembre de inventar, e assim atingiremos a felicidade suprema. Não falo contra vocês, que me estão a ler, apaziguados com as vossas transgressões financeiras. Falo de mim. Cada um lida com as suas futilidades da forma que mais lhe apraz. Eu escrevo sobre elas.
Não sou católica. Enfim, não renego nada, porque para isso teria que ter a certeza que o renegado existe e nem isso tenho. Já se vê que tão-pouco nego a sua existência. Digamos que admito qualquer das possibilidades e, em última instância, tenho fé em mim e em todos nós. Creio que tudo o que existe de bom a nós se deve. Mas, impiedosamente, e até para manter a coerência lógica, penso também que aquilo que existe de mau é nossa obra. Porque se eu acreditar em Deus sou forçada a acreditar em vários deuses, para no final concluir que aquela gente que me olha tristemente pelo ecrã da televisão é, afinal, filha de um Deus menor.

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