terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A geração dos Senhores Doutores


Este é um pensamento que me tem assaltado (mãos no ar, sou um pensamento!) variadíssimas vezes, mas lembrei-me de escrever sobre ele por causa de uma música. O que não é inédito: as músicas, os filmes, os livres, os amigos, as conversas que se ouvem no metro, em regra são a géneses de uma Cinderela descalça.
Ora bem, esta música de que vos falo que já foi considerada – por esse oráculo da vida portuguesa que é o jornal da SIC – como o hino de uma geração. Pois é, “Que Parva que sou!”, dos Deolinda. O hino dos 20 e poucos e dos 20 e muitos, que ainda não conseguiram o primeiro emprego ou saltam de emprego precário para outro mais precário ainda, que vivem em casa dos pais e da mesada que estes lhes pagam, e que não podem aspirar a voos mais altos na vida por um simples pormenor: é que depois de duas dezenas de anos a estudar descobriram que são demasiado qualificados para o emprego a que aspiram. Ou para qualquer emprego, já agora.
Não é inaudito que licenciados sejam caixas de supermercado ou que trabalhem nas obras. O que em si mesmo não tem nada, mas absolutamente nada, de mal, não fosse o facto de que quem dedica um bom pedaço de vida a livros e teses em regra tenha outro tipo de aspirações.
Eu fui uma das sortudas. Enfim, deixem-me rectificar: eu fui uma das sortudas que além disso trabalhou bastante. Mas tive a sorte de ter nascido com um QI que me permite desejar sempre mais do que tenho; tive a sorte de ter pais que me obrigassem a espevitar e a tirar notas que iam além do medíocre; tive a sorte de ter terminado a universidade numa altura que ainda não foi catastrófica; tive a sorte de ter sido imediatamente contratada para um posto que me tem aberto muitas portas; tive a sorte de ter feito boas escolhas profissionais desde então. E se nisto há mérito meu também há, obviamente, muita bênção das forças cósmicas, porque estou certa que nos centros de (des)emprego desse Portugal fora há gente igualmente capaz, mas menasmente abençoada.
Recordo a tragicomédia de uma amiga, licenciada em letras, que após meses de procura e já em desespero de causa concorreu a um emprego numa livraria como “acartadora de livros”, mas cujo posto lhe foi recusado porque era hiper-qualificada.
Sim, hoje em dia sabemos demais, somos bons demais. Porque se depois da licenciatura não conseguimos emprego saltamos para a pós-graduação, de seguida corremos para o mestrado, se nada aparece ainda nos metemos no doutoramento, e quem sabe no pós-doutoramento, e de repente damos por nós com trinta e muitos, cheios de diplomas, mas sem nenhuma experiência profissional. Ou seja, um investimento perdido para qualquer empresa.
Agora, uma coisa devo dizer: nem tudo é culpa do país que temos. Uma parte da responsabilidade assaco-a, é certo, aos vários Governos que ao longo dos anos têm permitido a abertura de cada vez mais faculdades, e cada vez mais cursos, cada um com uma designação mais estranha do que outro: Animação Sócio-Educativa, Engenharia Mecatrónica, Ergonomia, só para citar alguns.
Mas a outra parte é responsabilidade nossa. “Nossa”, isto é, de quem se iludiu a pensar que há por aí muitos filósofos a conseguir pagar as contas da luz e da água (ou melhor, muitos licenciados em filosofia). Em bom rigor, só conheço um Sócrates nos dias de hoje que, por coincidência também não é engenheiro, mas licenciados em engenharia.
Ou seja, o Estado, o Governo, este Governo em particular, não é o culpado de todos os males que existem no mundo. É da maioria, mas não de todos.
Uma parte é culpa de quem quer à viva força ser doutor, mesmo tendo consciência que é estúpido que nem uma porta. Perdão, mesmo tendo consciência de que é intelectualmente esforçado. Ora, nem todos podemos ser doutores. Assim como nem todos podemos ser bailarinos ou pianista ou electricistas. Eu, por exemplo, tenho um péssimo ouvido para a música. Dito isto, seria justo querer à viva força ser violinista? Pretender ganhar dinheiro com isso, forçar os outros a ouvir-me e, além do mais, a pagar-me para isso? A única forma de fazer da carreira musical modo de vida seria pagarem-me para não tocar. Ou então imagine-se que o meu sonho de menina era ser carpinteira: dar-me-ia isso o direito de exigir ao Estado que me garantisse um emprego no meu métier, não obstante eu ser manualmente idiota, por outras palavras, ser totalmente inepta com as mãos e com qualquer tipo de trabalho manual?
É claro, e sei bem disso, que nem toda a gente desta geração sem eira nem beira tirou o curso errada ou é profissionalmente incompetente. Longe disso. A verdade é que neste país as oportunidades são poucas para todos os que não nos chamamos João Pedro Soares. É verdade que os melhores cérebros estão a partir precisamente porque já perceberem que aqui a ambição bate num tecto bem baixinho e que as cerejas no topo do bolo estão reservadas para os filhos dos primos dos amigos.
Que nos resta fazer? A minha sugestão – pelo menos se não forem manualmente inadaptados, como eu sou – é seguirem as velhas carreiras manuais. É que vos garanto que não há canalizador, picheleiro ou pedreiro desempregado. E sem que um deles cá venha a casa, coce a cabeça, olha para mim e me diga, em tom paternalista: “Menina, isto vai ser caro!”. E não é que sai mesmo?

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