terça-feira, 12 de abril de 2011

Morreu em casa sozinha


No meio de tantas notícias de escândalos políticos, do FMI e outras desgraças que tal, já ninguém repara naquele pequeno quadradinho no canto inferior do jornal que relata outra morte solitária de alguém cuja falta nunca foi sentida.
E nós habituámo-nos a isto. Habituámo-nos porque aquela desgraça individual parece coisa de somenos quando comparada com a desgraça geral que afunda este país. Habituámo-nos porque depois da primeira morte, dos “ah!” e dos “ohs!” que a acompanharam, veio a banalização do relato. Como é que a nossa sociedade chegou a este ponto em que já ninguém se choca que as pessoas morram sem que se dê por isso e só muitos anos depois alguém se recorde que um dia existiu ali uma pessoa que trabalhou, amou, odiou, e depois desapareceu sem deixar rasto?
Mas creio que nos habituámos sobretudo porque sentados no café, cheios de vigor, de anos pela frente, com agendas de telemóvel repletas de contactos e não sei quantos amigos no msn, nos parece – na ignorância desta juventude que arrastamos até à meia-idade - que aquela desgraça nunca nos vai tocar a nós. A nós, que somos populares, cheios de amigos e namorados. Como poderíamos morrer sem ninguém dar conta? Certamente que alguém haveria de notar que passaram 12 horas sem postarmos nada no FB. Que mais não fosse, na 2.ª feira soaria o alarme quando não aparecêssemos no escritório e a cadeira continuasse vazia todo o dia. Como poderíamos nós ser insignificantes? Nós, que temos um namorado atencioso ou um marido dedicado, e filhos que hão-de cuidar dos nossos corpos mirrados quando formos demasiado velhinhos para o fazer por nós mesmos.
Mas… estas pessoas não tiveram também tudo isso? Será que nunca tiveram amigos? Nem namorados? Nem marido ou mulher? Nem filhos? Sobrinhos, que seja? Um patrão rabugento? Uma secretária melosa?
O que ficou de tudo isso no final? Uma conta bancária em que ninguém mexe? Um cão velho que morre de fome ao pé do corpo gelado do dono? Uma casa vazia cheia de noites de solidão?
Certamente que desde sempre morreram pessoas. E desde sempre morreram pessoas sozinhas. Duvido é que essas mortes passassem despercebidas aos olhos dos que cá ficavam.
Que mundo é este? Seremos todos crianças birrentas e egoístas que não vêm mais nada além do próprio umbigo? Ou será que nos tornámos tão irrelevantes que a nossa não ausência não é sequer sentida?
Como é que há filhos que não vêm os pais há 10 anos? Como é que há avós que nunca conheceram os netos? Como é que uma reunião com um tipo que nem conhecemos, sentado do outro lado do mundo atrás de uma webcam, se tornou mais importante do que um jantar de família?
Temo que tenhamos chegado a um ponto de não retorno. Um momento na história da humanidade em que as relações são fugazes, os casamentos momentâneos e vividos em duas casas distintas, a minha e a tua. Um momento é que os filhos são um brinquedo para nos sentirmos úteis e amados e a família não passa de uma data de gente entediante com quem somos obrigados a passar a noite de Consoada.
Provavelmente daqui a 50 anos vou estar em casa sozinha, sentada neste mesmo sofá, rodeada de fotografias dos lugares exóticos que visitei, diplomas e publicações pelas paredes, e um vazio enorme no lugar ao lado do meu, que nunca chegou a ser ocupado por ninguém. Se calhar vou partilhar este espaço com 5 gatos porque são os únicos que não se importarão de dividir comigo a sua existência. Se calhar vou passar dias na cama porque não me apetece levantar nem tenho motivo para isso. Se calhar vou esperar ansiosamente que chegue o carteiro só para ter alguém a quem dizer bom dia, porque bem sei que nunca vou receber uma carta. Se calhar uma noite vou sentir mais frio do que a noite fria que está lá fora. E provavelmente nessa altura gostaria de ter alguém ao pé de mim que me agarrasse na mão e me tranquilizasse. E de certeza que vou lamentar não haver vivalma para me dizer adeus, lamentar a minha partida e fechar-me os olhos.
E o pior de tudo isto é que nem sei ao certo como aqui chegámos, como aqui cheguei, nem sequer sei o que fazer para não ser mais uma notícia de um jornal manhoso:
“Morreu em casa sozinha. As autoridades deram pela sua ausência porque não escrevia no blog há mais de 5 anos”.

4 comentários:

  1. hoje um amigo disse-me assim: tenho pena de ti, tens que mudar se não vais acabar sozinha...

    mas nas sociedades modernas como a nossa, acabar sozinha é algum problema? muito sinceramente não acho. Não ter um namorado pode ser consequencia de razões tão diversas, não quer namorar, não encontra aquela pessoa ideal ou simplesmente não se consegue esquecer do antigo...vá lá, são todas válidas, não são? Não temos ninguem e pronto.

    até aposto que as pessoas velhotes que morreram sozinhas em casa já foram casadas.

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  2. De certeza que foram casadas e até tiveram filhos. Isso é o que é mais assustador: uma vida plena de companhia não é sinónimo de uma morte livre de solidão.

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  3. Hum, nem a propósito...

    Solidão não é a falta de gente para conversar, namorar, passear ou fazer sexo... Isto é carência.
    Solidão não é o sentimento que experimentamos pela ausência de entes queridos que não podem mais voltar... Isto é saudade.
    Solidão não é o retiro voluntário que a gente se impõe, às vezes, para realinhar os pensamentos... Isto é equilíbrio.
    Solidão não é o claustro involuntário que o destino nos impõe compulsivamente para que revejamos a nossa vida... Isto é um princípio da natureza.
    Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado... Isto é circunstância.
    Solidão é muito mais do que isto.
    Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma....

    Retirado de http://aforcasuprema.blogspot.com/2011/02/chico-buarque.html

    Thoreau dizia que não existia companhia mais companheira que a solidão.

    Mas...

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  4. Lindo esse texto.
    Obrigada.
    MAS, gostei especialmente do fim lhe deste.
    É que esse "Mas..." diz tudo o que ficou por dizer.

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