sábado, 9 de abril de 2011

Dar e receber


A queixa habitual é que damos tudo de nós, o que temos e o que não temos, e não recebemos nada em troca. Já ouvimos este lamento face a relações profissionais, familiares, de amizade… certamente até face ao cão e ao gato também já foram apresentadas este tipo de reclamações.
É bem verdade, e todos nos identificamos com este protesto. Não que demos alguma coisa, uma parte de nós em regra, com a exigência de receber qualquer coisa em troca, mas essa pressuposição acaba por existir, que mais não seja porque nos magoa dar tanto e receber tão-pouco, quase se fossemos transparentes face àqueles que nos rodeiam. Não queremos ter a expectativa de receber de volta porque é mesquinho e nós não somos mesquinhos. Mas é verdade é que temos. Somos mesquinhos… so what?
Mas hoje quero falar-vos de outra coisa. Na verdade, do oposto. Ou seja, não daqueles que tudo dão, mas daqueles que nada recebem.
Porque também isto incomoda, e magoa, e pode destruir relações que de outra forma seriam bonitas e cor-de-rosa.
E, curiosamente, não é tão raro assim não saber receber.
Quantas vezes já elogiámos o vestido de uma amiga que imediatamente se desfez em mil desculpas por aquele trapo velho e usado, que comprou baratíssimo em saldos e que insiste em usar apesar de, segundo ela, lhe ficar mal? E por mais que insistamos no generoso decote que lhe faz, ela continua a corar e a recusar o piropo que tão honestamente lhe lançámos, quase como se de uma ofensa se tratasse.
Quantas vezes quisemos ir a casa de um amigo doente, munidas de caldos de galinha, brufenes e trifenes, e nos deparámos com a flagrante recusa de uma voz a arder em febre, não se sabe se mais doente pela efectiva doença ou pelo temor se vir a ser um incómodo para alguém?
Uma vez comprei um presente a uma pessoa que me é muito querida. Terrivelmente difícil comprar-lhe presentes, exacerbadamente difícil de agradar. Andei e desandei pelas lojas todas, ainda para mais preocupada com o meu fraco orçamento, e no final lá comprei uma célebre esferográfica com uma luzinha na ponta. Kitch, bem sei, mas poupem-me, não teria eu mais que 10 anos. Naquele momento em que alguém abre um presente nosso, daqueles que escolhemos com toda a ilusão do mundo, ouvem-se rufares de tambor cá dentro da cabeça. O meu coração saltava, na ânsia de saber se iria ou não gostar de tamanha maravilha da escrita, e já quase saboreava o doce abraço que se lhe seguiria. Curiosamente – ou talvez não – não houve abraço, nem exclamações, nem sequer um agradecimento. Fui asperamente repreendida por ter gasto as magras economias uma coisa tão tonta. Bem compreendo o outro lado da história: não me onerar, não sentir que tinha que gastar dinheiro (que não tinha) em todos os aniversários e Natais. No fundo, a intenção era boa, mas, como bem dizem, de boas intenções está o Inferno recheado, e aquela pequena fúria (porque o desagrado depressa se transformou em fúria) partiu o meu pequeno coraçãozinho de compradora compulsiva.
Depois dessa vez, numa outra vez das vezes da minha vida, jantava face a alguém por quem estava muito apaixonada. Taciturno, silencioso, pressenti-lhe a tristeza e a preocupação. E num gesto tão natural como o de afastar um caracol da cara fiz-lhe uma festa na face. Ou melhor, comecei-a a fazê-la, mas não a pude terminar, porque imediatamente o rosto se afastou o suficiente para que fosse impossível tocar-lhe e, com ar ríspido, explicou-se que era deselegante ter gestos de afecto em público. Ora, eu não sou púdica, mas tão pouco exibo propriamente os meus carinhos e afectos como numa montra do Red Light District. Agora… da última vez o toque facial não é manifestação flagrante e abusiva de afecto. Uma festa é uma festa caramba. Uma carícia como se faz a um gato. Não falamos da posição de missionário, nem sequer de um beijo com línguas a voar pela garganta. Reduzi-me à minha insignificância de mera companhia de jantar e acabei o resto do prato naquele silêncio que se abate sobre nós quando queremos que a refeição termine depressa.
E depois dessa vez houve uma outra vez ainda: uma vez apaixonei-me por uma pessoa. E quis dar-lhe o mundo. Toda a admiração do mundo. Todas as esferográficas luminosas do mundo. Todas as canjas de galinha do mundo. Todas as carícias do mundo. Mas o meu dar foi rejeitado. Como nunca lhe tinham dado nada disto, nem coisa parecida sequer, ele não sabia como o aceitar. E porque não o sabia fazer… não aceitou.

9 comentários:

  1. é bem verdade, muita gente não sabe receber, resta-nos saber: não sabe receber, ou porque tem medo de receber e não poder responder da mesma forma? ou porque simplesmente não quer receber algo de nos?

    a primeira razão é legítima, mas estúpida
    já a segunda...é legítima também, e, triste!

    P.s: o teu amigo de não querer gestos de afecto em público agiu com muita falta de educação, acho eu...

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  2. Muita gente fica incomodada com o facto de os outros - o público em geral - detectarem neles alguma coisa que possa ser percebida como uma fraqueza. E, mais curiosamente ainda, pensam que amar e ser amado é uma fragilidade.

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  3. O saber receber pode parecer algo simples, mas não o é. Há um ditado que eu acho que se adequa aqui: O não governa, e o sim desgoverna. Quando se diz que não a um gesto, a uma relação, a qualquer coisa… isso protege-nos. Pois, um sim, permite que alguém invada a nossa vida e, como consequência (as vezes), destrua os nossos princípios… por isso, não é tão simples receber… é muito mais complexo.

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  4. Ninguém disse que era fácil.
    Pode ser embaraçoso, díficil, arriscado.
    Mas que seria a vida sem pontes de corda por cima de rios de imenso caudal?

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  5. Seria uma vida singela, pois não existiriam pontes de ilusão. Tudo seria clarividente o que pouparia muito sofrimento e criaria certezas quase absolutas. Porque não uma vida segura em detrimento da incerteza?!

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  6. Porque assim nem teriamos a certeza se estamos verdadeiramente vivos ou apenas em piloto automático.

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  7. … Voto de vencido. É melhor termos marcas da vida, do que uma vida “automática”. Embora, uma parte de mim quisesse ser esse piloto automático, a outra parte, gosta da incerteza do amanhã (pois, lembrando-me dos dias incertos que tive, esses foram os mais divertidos e onde me senti mais viva). A incerteza pode ser boa afinal.

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  8. Seja por amor ou simples paixão, até simplesmente por sexo, nada disto significa não conhecer e conviver com outras pessoas. Mas não significará sempre respeitar o outro? Não significará não trair ou, traindo, apressar-se a ser sincero, a logo assumir? Porque é que tão pouca gente respeita o outro e o trai egoisticamente sem pensar nos seus sentimentos...? M.C.

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  9. Concordo inteiramente contigo M.C.
    Por isso me parece que quando nos sentimos na iminente de pisar a linha da lealdade devemos simplesmente colocar fim à relação. Não tanto para nos escusarmos de continuar a dar, mas também para não continuar a receber o que já não nos cabe.

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