sábado, 21 de agosto de 2010

Será o stalking “some kind of love”?


Para além das paixões que cada um de nós viveu temos ainda aquelas que outros viveram por nós (sendo que, purtroppo, raramente estes dois vectores coincidem) e que merecem igualmente alguma reflexão. Desde logo, merecem o nosso respeito. Nestes tempos em que vivemos tudo é feito de plástico. Não se veja neste reparo alguma má-vontade para com o plástico. Pois que seria dos tupperwares, dos sacos de supermercado, dos copos de piquenique – em suma, o que seria de nós – sem o plástico? Mas se este material cai bem nos referidos itens já não caí bem, digo eu, quando nos referimos às relações humanas (nem, dizem muitos, às mamas, mas neste particular ainda estou em fase de ponderação). Se é tão difícil arranjar amizades puras, e ainda mais arranjar amores puros, tenho para mim que quando alguém nutre um sentimento genuíno por nós lhe devemos, ao menos, respeito e consideração. Não proponho a retribuição do sentimento porque isso são coisas do coração que pouco se deixam condicionar por relações de cordialidade e de rectidão moral. Mas respeito, isso devemos.
O problema nasce quando esse apaixonado ou apaixonada se transforma num stalker. Por mais reconhecidos que estejamos pelo apreço que alguém nos dedica, torna-se então muito difícil manter o tal sentimento de respeito. Não apenas porque corremos o risco da nossa boa-educação ser confundida com aquiescência pela parte contrária e assim alimentarmos uma paixão que nasceu já castrada, mas também porque a páginas tantas damos por nós saturados e irritados com tamanha perseguição e já só lhe desejamos um atropelamento, ainda que suavezinho.
A história começa assim: uma noite, já bem noitinha, tocaram-me à campainha. Pela câmara do intercomunicador só via os traços indefinidos de um rosto, mas depressa conclui que se tratava de um desconhecido. Que me vinha entregar uma coisa, dizia ele. Um presente enviado por um amigo. Expliquei-lhe, na forma mais amável possível para quem vive sozinho e é incomodado quase ao virar da noite, que àquela hora não lhe iria abrir a porta. Que voltasse noutra hora, se assim o entendesse.
Voltou uns dias depois, à tarde. Mal abri a porta dei de caras com um ramo de rosas. E um tipo baixinho escondido atrás dele. Explicou-me que era um mero mensageiro, e todos sabem que não se mata o mensageiro. Era o pombo-correio de um “amigo” meu, que gostava muito de mim e me queria oferecer as rosas. Por muito desinteressados que estejamos, uma pergunta se impõe: de quem se trata? Eu expliquei-lhe de volta que gostava de todos os meus amigos e certamente teria o maior gosto é saber quem era o autor da gentileza. A resposta foi curta, e já deixava adivinhar o que se seguiria: ainda não era tempo de o saber.
O que se seguiu foi um vaivém de idas e vindas do mensageiro, a entregar toda a espécie de presentes, nunca assinados e sempre com a promessa que o desfecho do mistério estaria para breve.
É que, de facto, este gente que nos persegue gosta do mistério. Talvez esperem tornar-se assim mais apetecíveis aos nossos olhos. Mensagem não assinadas, presentes sem cartão, telefonemas sem voz do outro lado, tudo isto faz parte do doce encanto da sedução. Ou do desencanto, depende do contexto. No meu caso, passada a semana de fascínio (reconheça-se que um admirador secreto tem qualquer coisa de Hollywoodesco), depressa chegou o aborrecimento, a irritação e, porque não dizê-lo, o medo.
Olhava constantemente para as pessoas que me rodeavam. Se me olhavam de volta imaginava logo um potencial tarado. Na rua trocava de caminho diversas vezes, observava por cima do ombro se alguém me seguia. Já me imaginava uma estatística de um serial killer ou de um crime passional.
Creio que o ponto de viragem foi a noite do dia dos namorados. Pouco antes de me virem buscar para jantar recebi outra encomendinha. Flores. Um urso de peluche que tresandava a perfume, como se fosse um filme de terror ou um péssimo anuncio de after-shave. Um poema, de duvidoso gosto, com a referência no final a um endereço de e-mail, qualquer coisa do tipo amo.te.vera, arroba, blablabla… E a foto. Uma foto minha, tamanho grande, retalhada em mil pedaços. Foi a gota de água. Aquilo que começou por me acariciar o ego transformara-se definitivamente num pesadelo.
Avisei o fiel mensageiro, a quem nem horas de tortura fariam revelar a fonte da minha desgraça, que tencionava ir à polícia porque a brincadeira se revelara de muito mau-gosto. E ele respondeu o mesmo de sempre: a resolução do mistério estaria para breve.
Creio que foi nessa mesma noite. Mal eu tinha entrado em casa já me tocavam à campainha. O curioso é que ao abrir dei de caras com um conhecido. Não um amigo, mas um conhecido, namorado ou ex-namorado (nunca cheguei bem a perceber) da amiga de uma amiga. Conhecera-o num jantar, e de seguida esbarrei com ele um par de vezes durante as saídas de falámos mais de 10 minutos, jamais sozinhos, em regra na presença da namorada. Conversa do mais banal. “Olá, como estás? E o curso? Está bom ambiente lá dentro?”. Pois parece que isto foi o suficiente para o senhor decidir que estava apaixonado por mim. Naquela noite, à soleira da porta, fez-me mil jutas de amor. E eu, imbuída pelo tal espírito de respeito por quem gosta de nós, expliquei-lhe amavelmente que ele estava confuso, provavelmente sentia-se sozinho, que aquele comportamento era totalmente inadequado porque eu tinha namorado e ele estava num limbo emocional. Foi-se embora, pouco convencido. E eu pouco convencida fiquei que a história parasse por ali.
Seguiram-se telefonemas. Das primeiras vezes mantive a postura de compreensão, e até alguma solidariedade existencial. Expliquei-lhe que nunca pensara nele dessa forma. Mas que lhe desejava o melhor e não o queria magoar. Mas depois a impaciência levou a melhor sobre a minha teoria de que nos tempos que correm devemos o mínimo de respeito por quem gosta de nós. Mas quando a sua insistência ultrapassou o limiar daquilo que eu acho de bom-tom, estalou-me o verniz. Eu tinha que gostar dele, só porque sim. E se me preocupava com ele tinha que sair com ele. E gostar dele. Por causa dele. E este “ele” chegou-me ao meu nariz arrebitado e num instante meti fim à conversa com algum comentário abrupto que já não recordo.
Confesso que com algum receio. Ele era um tipo emocionalmente inconstante. E, credo, enorme. Com amigos enormes, daqueles que vão para o ginásio levantar ferro e tomar substâncias que matam os neurónios. Resultado: nos meses que seguiram limitei as minhas saídas da noite, e quando o fazia andava de coração nas mãos, porque por milagre do stalkerwismo o tipo aparecia sempre no sítio onde eu estava, rodeado de um ou dois amiguinhos, e com olhar de filme de suspense. Já para não falar da vez em que o amor da altura me levou ao meu carro e lá estavam, um bando deles, todos encostados ao meu baby-car, como que numa espera. Mas não se metem com uma mulher de salto alto! Mandei o outro entrar comigo, abri a porta do carro com desdém, acendi os faróis, e lá vai ela … quase fiz xixi nas cuequinhas, mas ficou o personal statement.
Nunca mais soube nada dele. Espero que esteja bem, a sério que sim.

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