Numa relação há que fazer escolhas. Nem sempre as mais sensatas. Vá lá… raramente as mais sensatas. Lingerie rendada ou shortinho do Snoopy? Jantar à luz das velas ou um Mac no Mac? Recebê-lo efusivamente ou fingindo que nem dar por ele? Atendemos o telefone ao 1.º toque ou ao 24.º? Contamos ou não contamos?
Em qualquer relação humana, especialmente na de casal, existe o “eu”, o “tu” e o “nós”. Tenho para mim que ainda que os dois primeiros denominadores não se possam aniquilar nunca, este “nós” tem que ser o mais importante. Caso contrário seremos sempre e apenas duas pessoas que, por acaso, respiram no mesmo metro quadrado. Acontece que o dito “nós” não pode sobrepor-se de tal forma que destrua por completo os entes individuais, sob pena de acabar apaixonada por mim própria. Mas tão-pouco pode a sua edificação conduzir à sua destruição. Passo a explicar: a construção do “nós” implica, entre outras coisas, que a vida de cada um seja, na maior medida possível, um livro aberto para o outro. O filmezinho do “homem misterioso” poderá ter algum interesse no inicio da relação para aguçar o apetite (sendo que a mim nem por isso), mas há medida que a intimidade entre nós se fortalece e tomamos a decisão de construir qualquer coisa que vá para lá de um castelo de areia eu tenho que saber coisas dele e ele coisas de mim.
É como se cada dia tivéssemos que saltar de um prédio e contássemos em que o outro estivesse cá em baixo com uma rede para nos amparar a queda. Ora, eu só posso ter esta confiança nele (que não direi cega, mas certamente míope. Muito míope. Mesmo legally blind) se souber a que horas exactamente é que ele estará lá em baixo. Se tiver a certeza absoluta que não se ausentará para ir fazer uma mijinha ou para tomar uma fresquinha. O que quero dizer com isto é que eu só posso estar com alguém se confiar, se não viver em sobressalto. Mas para isso tenho que saber o que se passa na sua vida, de tal forma que aquele reduto intransponível de privacidade se estreita para que eu possa entrar, sabendo o outro que entro só eu, e não o cortejo de família e de amigos, e que aquilo que ele me confidencia morre ali, naquele mesmo instante em que entra no meu ouvido.
Mas há momentos em que ponderamos seriamente se devemos ou não revelar um episódio da nossa vida, um pensamento que tivemos, um acontecimento da véspera. Ou porque sabemos que não agimos da melhor forma. Ou porque temos receio que isso mude a ideia que o outro tem de nós. Ou porque nossa intuição avisa-nos que a forma como compreendemos o tal episódio, pensamento ou acontecimento não coincidirá com a apreensão do outro, de forma que nos arriscamos a cair ali num incidente diplomático.
Eu sou naturalmente desbocada. Não apenas porque insisto em vomitar tudo o que me vai na alma, mas também porque nas relações humanas, sejam elas com quem forem, gosto daquela sensação de que contei o mais que me é permitido pela minha esfera de intimidade. Porque só assim me sinto à vontade com as pessoas. Ainda hoje mantenho o hábito de revelar aos meus amigos mais queridos os pensamentos pouco cor-de-rosa que tive acerca deles no momento em que os conheci. Estupidez? Provavelmente. Mas na minha cabeça insana parece-me que cometeria sempre uma traiçãozinha se não tivéssemos como ponto de partida uma verdade, ainda que não a mais doce.
Nas relações do “ela” com o “ele” confesso que pequei muitas vezes por actos, palavras, pensamentos e até omissões. Nem sempre contei tudo. Creio convictamente que aquilo que não contei não deveria ter contado. Não faria de mim mais feliz. Muito menos do outro. Não porque fosse necessariamente alguma deslealdade ou traição. Aliás, se há coisa de que gosto de pensar quando me olho ao espelho é que nunca fui desleal. Já magoei. Já fui má. Já fui mesquinha. Mas nunca desonesta ou traiçoeira. Falo de coisas pequeninas, de pequenos nadas que acontecem na nossa vida. O colequinha que alimenta uma paixão intensa por nós. Pensamentos mais libidinosos com o personal trainer. Telefonemas insistentes de ex-namorados que juram a pés juntos que não nos esqueceram. Ou mesmo um encontro com um ex-namorado que nos faz abanar.
Será isto relevante? Certamente que é. Eu, pela minha parte, gostaria de saber todos estes little details caso fosse ele o actor principal. O facto de contar fortalecerá o que existe entre nós? Depende. Nunca sabemos. É um risco, e daqueles não calculados. Devemos contar? Pois…. Não sei. Até ao presente tenho contado (quase) sempre porque esta estúpida ânsia de viver numa casa de vidro a isso me força. Verdade seja dita que nas raras vezes que não contei tão-pouco me arrependi, nem me senti por isso pior pessoa. Verdade seja igualmente dita que das vezes que contei nunca senti no outro especial gratidão por este rasgo de sinceridade e certo é que muitas das vezes este comportamento de elevadíssimo estatuto moral terminou em acesa discussão e num derrame de lágrimas.
Nem todos gostamos das verdades. E mesmo aquele de nós que a vivemos como uma religião temos momentos em que mudamos de crença e veneramos antes a mentira. Porque a mentira é sempre mais doce. Ou pelo menos a omissão. Que não sendo aquele açúcar amarelo da mentira funciona, pelo menos, como uma cápsula de adoçante.
Assim vivo eu neste dilema. Porventura também vocês. Não creio que exista uma directriz definida com absoluta validade para todas as situações. Existem guide lines, certamente. Mas, em última instância, tudo depende do ponto em que está a relação, da forma como eu lido com as coisas, da forma como o outro lida com as coisas, do tipo de informação em causa.
Da última vez que me deparei com esta dúvida existencial optei por contar. Nem consegui esperar por faze-lo frente a frente e desbobinei tudo ali mesmo, na linha telefónica. Bem sei que sou tonta até à quinta casa. No manual das mulheres inteligentes a 11.º lição é bem explícita na listagem de coisas que devem ser ditas cara a cara e nunca por telefone ou mail. Mas isto está no meu código genético. E não há manual ou teoria científica, por mais comprovada que seja, que nos faça ir contra o nosso ADN. Do outro lado da linha começou por se ouvir um silêncio que abafou todos os ruídos da noite, menos o do meu coração. Depois a conversa continuou, mais ou menos normalmente, ou melhor, menos normalmente que mais. Era um pormenor irrelevante. E que na minha cabeça só demonstrava como as coisas estavam bem entre nós. Mas a minha cabeça não é, felizmente, modelo para a cabeça de ninguém (ou o mundo estaria perdido), de modo que estou em crer que na cabeça dele este “pequeno nada” teve uma leitura bem diferente.
Arrependida? Nem por isso. Receosa? Um bocadinho. Percebe-se perfeitamente a angústia de Hamlet nas duas divagações existenciais com a caveira. E o resto é silêncio.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário