sexta-feira, 18 de março de 2011

A vida debaixo do colchão


Um dos contos preferidos da minha não longínqua infância constava de uma colectânea famosa na altura (As Histórias do Avozinho) e contava o drama de um velho tacanho e avarento que “guardava com carinho, o seu rico dinheirinho” debaixo do colchão. “Aquilo de nada servia, mas ele não se importava, e toda a sua alegria no mundo se resumia no dinheiro que contava” (juro-vos que não estou a ler e sim a debitar de memória, fruto das muitas vezes que li o dito conto). Mas um dia veio uma tempestade tremenda e a enxurrada arrastou-lhe o colchão com todo a sua pequena fortuna.
Há pessoas que vivem assim, com a vida debaixo do colchãozinho. Deixam de fazer as coisas – em suma, deixam de viver – há espera que algum dia aconteça alguma coisa. O que seja. Que ganhem muito dinheiro. Que arranjem o emprego dos seus sonhos. Que um ex-namorado se arrependa e volte atrás. Há espera que fiquem doentes, ou que morram até. Não sabem quando alguma destas coisas vai suceder, eu mesmo se ocorrerá de todo. É que com excepção da sempre certa morte tudo o mais é incerto.
Mas por medo, tacanhez, precaução extrema, ou simplesmente inabilidade para viver, não se comprometem com nada. Quase como quem nunca sai da ombreira da porta à espera que a campainha toque.
Sei de quem não gaste um tostão na ansiedade de dias sombrios, com despesas tamanhas que exijam todos os cêntimos dos seus cêntimos. Terríveis doenças com medicamentos caríssimos, hecatombes financeiras, roubos e incêndios, nenhuma desgraça é suficientemente impossível para ser invocada no momento em que se poderia usar algum daquele dinheiro para comprar uma réstia momentânea de felicidade.
Sei de quem não queira ter filhos enquanto não tive uma situação económica estável, isto apesar de contar com um dinheiro certo ao fim do mês e estar num daqueles empregos é que ninguém é despedido (mesmo que rebente com a secretária) ainda assim procura uma estabilidade que nem sei sequer se existirá nesta galáxia. Quão mais estável pode alguém estar? Haverá que criar raízes e deixar crescer um tronco como uma árvore…
Sei de quem vive atormentado pelo aparecimento de uma hipotética e eventual doença que corre na família. Não há regra matemática que garanta que venha a sofrer dela. Mas a morte de dois ou três parentes próximos às mãos da dita doença arreigou naquela cabeça a ideia que um dia lhe calhará essa tão triste sorte. De modo que se fechou em casa, e se fechou ao mundo, porque não vê motivo para vínculos com algum ser humano, já que está destinado a partir em breve. Certamente partirá, como todos nós. Não sabemos é quando. Mas até lá vive como se estivesse morto, talvez na crença de que assim a verdadeira morte lhe custará menos.
Sei de quem não compra uma casa porque espera e desespera para encontrar alguém com quem a dividir. Vive num cantinho acanhado, com vista para a parede do vizinho, consulta anúncios de T2 e T3, mas não se decide por nenhum deles, porque ainda aguarda por um príncipe encantado com quem partilha o castelo, e que a ajude a decorar com papel de ursinhos e uma cadeira de balouço o berçário para as muitas que crias que espera ter.
Sei de quem não partilha a a vida com ninguém porque um dia conta fazer as malas e sair daqui para assentar base no outro lado do mundo. É um sonho, e não uma certeza. É um objectivo futuro, e não uma realidade presente. Mas passa os seus dias de mala quase feita, sem assumir encargos patrimoniais ou emocionais, não vá ser que amanhã o telefone toque.
Estas pessoas não vivem. Estão apenas a passar o tempo até que alguma coisa aconteça. E como pode bem suceder que a dita nunca venha a ocorrer arriscam-se a um dia acordar e ver que tudo passou por eles, mas eles não ficaram com nada para si. Um pouco como espectadores da sua própria vida, que nem se interessam pelo enredo da história, mas apenas pelo seu final. Passam os dias (não os vivem, suportam-nos) agarrados à uma fugaz esperança ou a um improvável temor. E enquanto isso escondem a sua vida debaixo do colchão.

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