terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O primeiro dia de aulas


Há crianças que vibram com o primeiro dia de aulas, que mal podem esperar para conhecer os coleguinhas e que logo no recreio organizam a trupe que se manterá durante o resto do ano. Nunca fui uma dessas crianças.
Quando era pequena aterrorizava-me a mim própria com a perspectiva de um primeiro dia de aulas numa qualquer escola desconhecida. Sempre gostei de sentir medo. Tanto gosto que desde sempre me aterrorizo a mim mesma com pensamento que oscilam entre o soturno e o horripilante. Enquanto não pesei mais que 40 quilos os meus medos prendiam-se essencialmente com dois grandes terrores, que nada têm a ver com papões ou quartos escuros. O primeiro prendia-se com a morte das pessoas que me são mais próximas. O segundo, com o primeiro dia de aulas.
Aquele primeiro continua a fazer parte do meu catálogo de horrores, e bate-me o coração mais depressa só de pensar nele. O segundo foi sendo abandonado entre tantos primeiros dias, na escola primária, no ciclo, no liceu, na universidade.
Se assim, porque será que o primeiro dia de escritório ainda me incomoda?
Não é medo. É incómodo mesmo.
Chegamos a um edifico que mal conhecemos, perdermo-nos nos corredores, carregamos no botão errado do elevador, procuramos a casa de banho na copa e a copa na casa de banho, e ainda temos que olhar atentamente para a placa na porta para ter a certeza que estamos a entrar no nosso gabinete e não num outro qualquer.
As regras de funcionamento são um brave new world nas nossas vidas, e nem sempre os mundos novos são fácies de assimilar à primeira explicação. Em que pasta se gravam os documentos? Que tipo de letra usar? Com que grau de familiaridade ou de deferência tratamos os colegas? Devemos ir ao gabinete falar com eles ou ligar-lhes?
Enfim, uma selva a desbravar.
Mas mais do que as regras técnicas, o que custa são as ditas regras sociais.
Porque eu nem sempre tenho facilidade em lidar com pessoas que não conheço. Rectifico: eu nem sempre quero lidar com pessoas que não conheço e que, convenhamos, muitas vezes nem quero conhecer. Mas depois não posso evitar cumprimentá-los para manhã porque senão sou mal-educada. Nem encontrar-me com eles no bar. Nem esbarrar com eles no corredor. Nem procurá-los para esclarecer dúvidas.
Passados uns meses tudo isto será banal. Já serei livre de os amar ou odiar. Poderei comentar as suas vidas tal como comentarão a minha. Mas estes primeiros dias são uma espécie de estado de graça no qual vivemos todos. Ou de desgraça, tido depende da perspectiva.
De graça porque ainda não me apercebo das manias irritantes que cada um tem e, por outro lado, ainda sou bem sucedida a ocultar as minhas. De modo que aos olhos uns dos outros somos todos perfeitos.
Ainda ninguém sabe que me levanto da cadeira 20 vezes numa hora, que não consigo trabalhar com o ruído das conversas, que fico insuportável quando estou com fome, que não lido bem com correcções e avaliações por parte de pessoas que tenho com menos aptas do que eu, que nos dias em que estou afundada em problemas gosto de ficar sozinha na minha concha, que não admito que me mexam nas coisas sem autorização, sobretudo se for nas minhas bolachas.
Mas ninguém ainda sabe isso.
Nem eu sei nada deles. Não sei quem discute com quem, quem namora com quem, quem faz o trabalho de quem, quem é bom em quê, em suma, desconheço aquelas pequenas delicias sumarentas que tornam a vida real numa novela.
Porque eles estão do outro lado da sala, com as suas private jokes, as suas reuniõezinhas junto à máquina de café, e as combinações de fim de semana, ao passo que eu estou no meu cantinho, a fingir que não ouço as conversas que me rodeiam e que sei que não me são destinadas, ansiosa que passe a hora do almoço porque detesto comer sozinha e enquanto não se adquire o passe para o mundo secreto dos coleguinhas é esse o destino que nos espera entre as 13 e as 14h.
E quanto todos saem para almoçar parecemos olhar atentamente para o ecrã mas afinal olhamos pelo canto do olho para o grupo que sai feliz e sorridente, na vã expectativa que alguém volte atrás e nos pergunte se queremos ir também. E como ninguém o faz pegamos numa revista e lá vamos nós engolir uma sandes nos 10 minutos que tardamos em folhear a dita. Mas talvez seja melhor assim. Que raio se diz numa mesa onde não comecemos ninguém? Fazemos conversa casual ou mantemos o silêncio? Olhos baixos ou sorriso tímido? Ou, de forma ainda mais arranjada, rimo-nos às gargalhadas quando alguém contar uma piada?
Hoje superei o medo dos primeiros dias. Mantém-se o tal incómodo, que ainda não consigo controlar. Mas, sobretudo, a expectativa. De novos desafios. De dias melhores. De dias felizes. E essa expectativa também não é um experiência nova para mim, porque traduz exactamente a mesma emoção que se apoderava de mim naqueles primeiros dias de aulas em que abria o novo manual a não podia deixar de pensar, em êxtase, na quantidade imensa de coisas novas que ia aprender.

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