quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Nem as cegonhas gostam das encalhadas


Os bebés chegam de Paris no bico de uma cegonha. Toda a gente sabe isso. O que muita gente não sabe, ou provavelmente nunca se deu ao trabalho de pensar, é que as cegonhas não gostam de mulheres solteiras, nos seus trintas, que mal conseguem ouvir os seus pensamentos tal alto é o tic-tac do relógio biológico. Em suma, nem as cegonhas gostam das encalhadas.
Chegamos a uma idade na vida em que olhamos para o lado e vemo-nos rodeadas por pessoas com as so called “vidas estabilizadas”, seja lá o que isso for. Não é de todo o facto de terem um ordenado certo no fim do mês e já não necessitarem de se preocupar com contas e dinheiro, mas sim que tenham uma pessoa certa nas suas vidas e já não tenham que se preocupar com quem vão passar férias, passagens de ano e dias dos namorados.
Como se isto tudo não bastasse – sendo que este “tudo” é imenso, brutal, violento – ainda para mais, qual cereja no topo do bolo, foram riscadas do caderninho de encargos da empresa de entregas das cegonhas. Os passarocos pura e simplesmente não querem nada connosco. E como se tudo aquilo não bastasse, e já estamos com o “aquilo” acumulado com o “tudo isto”, ainda o nosso sucesso profissional é constantemente confrontado com a pergunta (umas vezes maliciosa, outras apenas ingénua) do célebre “Então, quando é que te decides a ter filhos?”. Desculpe, repita a pergunta, mas agora sem esse tom de reprovação. Muito menos o tom de lástima.
Porventura o desfecho actual da nossa vivência é o resultado de opções pessoais, mais ou menos pensadas. Não vamos pensar que foi (tudo) obra do destino, desse maléfico destino cruel que deu indicações erradas ao nosso príncipe azul, de tal forma que o desgraçado foi bater a outra porta que não a nada. Não é fruto do acaso que nós estejamos a escolher sapatos enquanto as outras escolhem biberons.
Mas, caramba, que culpa tenho eu do meu suposto príncipe estar algures com uma fada ranhosa na cama (sem jogo de palavras, please) e que todos os outros príncipes ainda disponíveis estejam ocupados a lutar com dragões?
Um dia, enquanto partilhava estes pensamentos, o meu interlocutor olhou para mim sarcasticamente e respondeu-me que esta questão só era problemática para os homens, e que eu, sendo mulher, podia ter filhos quando bem entendesse e com quem bem entendesse. Ai é? Deixe-me ver se entendendo o que não entendi quando me disse que eu podia ter filhos quando bem entendesse: está a sugerir que eu tenha sexo com um tipo qualquer que conheço à noite? Do qual não sei nada? Nem doenças, nem historial familiar, nem forma de ver o mundo? Mais, está a sugerir que tenha sexo não protegido com o fulano, já que, tanto quanto sei, essa é a única forma de o sexo resultar em bebés? É que se está a sugerir isso certamente nunca ouviu falar de HIV e de todas as outras doenças sexualmente transmissíveis, já para não falar no desafio emocional de ter um acto tão íntimo com quem nunca vimos na vida?
Outra possibilidade é fazer isto com um velho namorado ou um amigo de longa data, mas… não soa um bocadinho a traição? Mais do que apunhalar alguém pelas costas isto seria como fuck him by the back. Claro que sempre poderíamos concretizar isto às claras, que é como quem diz, informá-lo do nosso projecto e apenas o levar avante caso ele esteja de acordo. “Olha, é o seguinte, eu gostava imenso de ser mãe, mas dada a impossibilidade de ter uma relação estável com alguém por quem me tenha apaixonado, queria perguntar-te se estarias disposto a ter sexo comigo, de forma a que eu engravidasse, sendo que não terias qualquer responsabilidade parental com a criança, aliás, nem ela saberia quem é o pai?” Reconheço: soa mal, por tantos e diversos motivos. Mas ainda que deixássemos de lado as peias morais que se suscitam a esta hipótese e sejamos meramente pragmáticos, devemos também ser realistas, e concluir que dificilmente encontraríamos alguém que entrasse neste barco connosco. Por sua vez, e ainda que assim fosse, sempre teríamos de viver com o risco permanente de o pai biológico um dia nos bater à porta, pedir um teste de ADN, e subitamente eis que temos o juiz a decretar a guarda conjunta da criança. E de repente o nosso bebé está a passar férias e fins-de-semana com uma pessoa que nunca viu, que nunca o desejou, e agarrado à saia de outra mulher.
E não se pense que em última instância podemos investir uma pipa de massa no nosso futuro emocional e recorrer às técnicas de procriação assistida. É que em Portugal, bem como na maioria dos países, o acesso às inseminações e às fertilizações in vitro restringe-se a casais heterossexuais, vivendo em matrimónio ou em união de facto (art. 6.º da lei n.º 32/2006). Ora, não nos encaixando nós em nenhuma destas categorias bem podem os médicos desenvolver técnicas médicas que nenhuma nos servirá. A inseminação com esperma de um dador anónimo está fora do nosso horizonte de soluções. A não ser que façamos uma trouxinha e passemos a fronteira para a vizinha Espanha, onde sim que é legalmente permitido que mulher sós recorram às técnicas reprodutivas, nomeadamente à doação de esperma. È verdade meus amigos, se antes íamos a Espanha para não termos meninos (recordam quantas colegas de faculdade foram comprar caramielos e fazer um aborto?), agora vamos a Espanha para os ter.
Ou seja, não é impossível, mas é complicado. Complicado, desgastante, custoso, desafiante.
Por conseguinte, volte atrás. Volte atrás e repita a sua estúpida pergunta tendo agora em mente que fazer bebés é uma daquelas poucas, pouquíssimas, e diria mesmo uniquissima, coisa na vida que não posso fazer sozinha. Eu posso viver sozinha, viajar sozinha, jantar sozinha, beber sozinha, até me posso satisfazer sozinha. Não posso é fazer filhos sozinha. De modo que, agora que se consciencializou deste facto, repita lá a sua perguntinha.
“Então, quando é que alguém se decide a ter filhos contigo?”
Obrigada, assim está melhor.

4 comentários:

  1. Realmente pode fazer quase tudo sozinha.
    Mas é muito triste!

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  2. A autonomia e a independência nem sempre são escolhas. Por vezes podem ser acidentes de percurso.
    E sim, é triste.

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  3. Não queria ser ofensivo, devo até confessar que gostei muito de a ler.
    Foi um prazer ter encontrado o seu blogue gostei dos sentimentos, vários, que me atravessaram ao ler o seu texto.
    De inicio achei divertido, a meio tive vontade de “preencher os papéis de voluntariado” e acabei com vontade de seguir os seus escritos, acho que vou ser frequentador.

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  4. Raramente considero as ideias e as opiniões dificilmente como ofensivas. Quando muito poderão ser duras de ouvir.
    PS - fico a aguardar essa requisição de voluntariado ;)

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