quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Nas entrelinhas



Nas entrelinhas dizem-se coisas fantásticas, esmagadoras, absurdas, horripilantes, apaixonadas, dolorosas, surpreendestes, misteriosas.
O que está nas entrelinhas deixa-me a mim assustada, apaixonada, agradecida, receosa, envergonhada, devastada, feliz, exuberante.

As máquinas são mais fáceis. E isto que eu mal sei lidar com elas e já fui proibida de me aproximar de impressoras, fotocopiadoras e faxes. Mas quando o círculo da placa cerâmica do meu fogão fica vermelho eu sei que está quente. Só isso, mais nada. Quando a máquina de lavar louça apita eu sei que terminou. E não há mais nada. As máquinas não funcionam com mensagens subliminares, com coisas que são ditas sem o serem, com sentimentos na penumbra. São simples e límpidas como uma garrafa de água do Luso.
Já as pessoas… as pessoas são tão complexas! E quantas vezes o que dizem é bem menos, pelo menos bem menos importante, do que aquilo que não dizem, do que o que fica por dizer, do que aquilo que esvoaça nos silêncios, nas hesitações e nos duplos sentidos.
Se ele diz que está cansado, será que está mesmo fisicamente extenuado? Ou cansado de mim? Só cansado para estar comigo ou para estar com toda a gente?
Se ele comenta que a outra fazia as coisas de outra forma, quer dizer que eu as faço mal? É uma mera comparação fáctica ou antes valorativa? Será que tem saudades dela? Ou, pelo menos, de como ela fazia as coisas?
Se ele comenta que já não sou quem era é porque gostava mais do “era” do que do “sou”? Mudei assim tanto? Ou mudou ele? Ou o que mudou é o que existe entre nós?
Se ele me explica que ainda não decidiu a vida dele, que raio quer decidir? Sobre o emprego? O carro? A casa? Eu? Nós?

A pior inimiga de mim mesma vive cá dentro, dentro desta cabeça.
Por vezes é benevolente e permissiva. Vê as coisas mas finge que não as vê. Inventa justificações absurdas só para não ter que encontrar a real explicação.
Ele não vem esta noite? Claro, é compreensível, anda cheio de trabalho, certamente prefere dormir para acordar bem-disposto no Domingo.
Ele ainda não te disse que gosta de ti? Demonstra sensatez, não se quer precipitar.
Não te apresentou à família? É reservado. E quer proteger-te.
Achas que ele já não gosta de ti? Que disparate! Ainda ontem te disse que sim. E te ofereceu flores. Não se oferece flores quando não se gosta, bem sabes.
E ela, a minha cabeça, desculpa-o. E eu acredito nas desculpas.
Outras vezes ela cria cenários e teorias da conspiração. De repente o episódio mais inócuo se torna um engodo, um enredo de fotonovela. Faz-me duvidar de tudo, questionar todas as afirmações. A certo ponto só me apetece perseguir as pessoas para confirmar se o que me dizem é verdade ou se o mundo não terá construído uma enorme cabala contra mim, para me enganar e poder observar todos os meus movimentos, como se estudasse um animal numa jaula. E começa a discorrer sobre a nova amiga que ele tem no Facebook. Sobre aquele telefonema ao qual ele respondeu monossilabicamente. Sobe a mensagem recebida de madrugada. Sobre o café com a ex-namorada. Sobre a fotografia antiga que conserva na carteira. Na verdade, quando ela – a minha cabeça - quer fantasiar basta-lhe bem pouco para o fazer. Na verdade basta-lhe nada. Porque do nada também se conseguem criar filmes. E o nada vive por entre as linhas. Essas linhas onde eu digo e ouço o que não e desespero, e espero por respostas que não chegam.

Deus escreve certo por linhas tortas. Mas o Diabo escreve nas entrelinhas.

2 comentários:

  1. Kika,
    sou tão perita a fazer dissertações sobre o que estará nas entrelinhas que adorei este texto! Vai-se a ver e tudo se resume a essa grande verdade de que... somos complicadas :)
    Beijinhos e saudadinhas,
    Picola minuin do trio maravilha :)

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  2. :) Gosto sempre de saber de ti pipoca.
    Sorry, Miss Expert das Entrelinhas ;))

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