quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Show me the money


Há tópicos que se devem evitar, sob pena de levarmos com um olhar de esguelha no meio da conversa: diarreias, prostituição, esgotos, cancro ou qualquer outra doença potencialmente mortal, pornografia, lixo e dinheiro. Não falamos destas coisas, nem sequer as referimos em voz alta, guardamo-las para aquele espaço privado que é o nosso pensamento. E se calha a virem à baila em qualquer converseta, mais vale pronunciá-los de forma breve e indolor, preferencialmente baixando o tom de voz e pousando os olhos no chão ou, em alternativa, olhando desconfiadamente e como um esquilo para todos os lados, de forma suspeita. Alguns destes temas estão proibidos porque nos enojam, outros porque nos amedrontam, e outros, mais estranhamente, porque nos seduzem mais do que gostaríamos e do que conseguimos confessar perante os outros. O dinheiro encaixa nesta última categoria.
Há umas semanas atrás dei uma conferência onde toda a minha audiência era composta por médicos. Eu bem avisei que ia ser provocadora nas minhas palavras, mas mesmo assim os pobrezinhos ficaram de olhos arregalados ao ouvir-me dizer que a medicina era um negócio. How did I dare? Pois se todos sabemos que os médicos, tal qual outro qualquer mortal, vão trabalhar de manhã por pura abnegação pessoal, bondade caritativa e amor ao próximo. Isto é, atendem pacientes (chatos, hipocondríacos e doidos) pela bonita cor dos seus olhos.
Ora, como já tantas vezes disse, eu sou uma médica aprisionada no corpo de uma jurista. Vale isto por dizer que admiro imenso os médicos, me encanto com as suas palavras e cada dia aprendo qualquer coisa com eles. Por isso me sinto tão confortável em olhá-los nos olhos (e foram centenas de olhos) e dizer-lhes que, efectivamente, o que eles fazem é um negócio, uma indústria, e assim deve ser regulada. A questão é que os médicos, como o comum mortal, não suportam ser acusado de gostar de dinheiro. De querer ganhar dinheiro. Como se este intento excluísse o outro, ao qual se vincularam no julgamento de Hipócrates.
Esta ideia vem da nossa moralzinha católica, segundo a qual o vil metal seria o culpado de todos os males do mundo. Os protestantes tiveram neste aspecto a vida mais facilitada, mas sem dúvida que espertos foram os judeus. Será a religião judaica menos respeitável pelo facto de não excluir o comércio, o lucro, por outras palavras, o dinheiro? Serão os católicos mais merecedores de felicidade por se despojarem, ou tentarem despojar, das riquezas terrenas? (rectius, esta última asserção não vale, obviamente, para o Vaticano)
A questão é que, entre nós, falar de dinheiro nunca foi visto como sendo de bom tom. Especialmente do dinheiro que ganhamos. Porque gera inveja dos outros e demonstra vaidade da nossa parte. Mas também do dinheiro que os outros ganham, porque revela o mesquinhos que somos.
E, sobretudo, nunca falar a alguém do dinheiro que essa pessoa nos deve. É certo e sabido que aquela amigável conversa que estávamos a ter até então assumirá subitamente um tom azedo. A pessoa vai olhar para nós com o arzito mais superior do universo, como se sentisse algum repúdio face a gentinha como nós, que fala em… dinheiro. Dinheiro. Em vez de coisas elevadas fala em dinheiro. Por isso, da última vez que alguém assim me olhou, como se fosse totalmente descabido da minha parte pedir o dinheiro que de direito é meu, tive que explicar ao pobre coitado que falava nessa coisinha insignificante que era o dinheiro porque todos os meses me chegavam a casa uma ampla panóplia de contas insignificantes, de coisinhas insignificantes como a água, a luz, o gás e a renda de casa. Para não esquecer aquele pequeno, pequenino pormenor, de eu ter que comer todos os dias. Uma falha minha, sem dúvida. Fosse eu mais perfeita e alimentar-me-ia de sentimentos puros e de pensamentos profundos.
Quase se pensaria que o dinheiro é uma questão de somenos, a little detail cuja mera menção é sinal de tacanhez. Um pequeno detalhe que faz com que algumas pessoas se casem com algumas outras pessoas que não amam, abandonem o sonho de criança de cuidar de bichos ou de flores para abraçar uma fulgurante carreira na banca, trabalhem 14h por dia sem espaço para filhos, namorados ou amigos. Esse pequeno detalhe pelo qual há quem viva, quem morra, e inclusivamente quem mate.
Dedicar a vida – ou a morte – a um punhado de notas é triste. Triste para quem assim se imola, claro está. Mas também para nós como sociedade. Porém, tenho para mim que a forma de darmos a volta a isto não é fingir que o dinheiro não existe e que pagamos as contas com beijinhos e abraços (e daí, também há quem as pague, mas costumam estar numa esquina). Não é deixando de falar nele, ou ofendendo-se com a sua mera referência, mas sim assumindo que desempenha um papel importante na nossa vida.
É certo que o dinheiro não compra tudo. You can’t buy me love. Ou talvez até possas. Mas tenho-me em melhor conta se assumires isso do que se, simplesmente, continuares a insistir que it’s not about money.

2 comentários:

  1. Verinha. Afinal quanto é que eles te pagaram pela conferência! É que se as consultas são pagas, porque razão as conferências são à borla?!

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  2. Conferência pagas??? Isso é para gente importante como o Xô Dtor André.

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