quarta-feira, 2 de julho de 2014




A (minha) gaiola dourada

Vi o filme "A Gaiola Dourada" logo que saiu e fiquei imediatamente fã. É uma fantástica sátira social que nos retrata com piada e exactidão, duas coisas que dificilmente andam juntas. Na altura vivia uma vidinha razoavelmente confortável em Lisboa, via os “Portugueses pelo Mundo” na RTP1 e conseguia comunicar com todos os taxistas  da cidade sem ser preciso usar o smartphone para fazer traduções. Na altura Macau era para mim um possível destino turístico, nunca um lar.
Mas a vida muda e em poucos meses deixei a apartamento, a família, os amigos, o trabalho, enfim, deixei uma vida, e aterrei em Hong Kong, com muitas incertezas e muitas esperanças.
Depois de chegada a Macau vi de novo o filme. Mantive a minha opinião: rigoroso no retrato, divertido na crónica, do melhor cinema feito por um português depois dos clássicos dos anos 40 da Beatriz Costa e do Vasco Santana. Mas a isto acrescento uma novidade: a certa altura dou por mim com a lágrima teimosa a correr pela cara.
Ora, esta confissão merece dois esclarecimentos. Primeiro, nunca fui particularmente saudosista nem apegada à pátria, pelo contrário, sempre me vi mais como uma cidadã do mundo, qual globetrotter de salto alto. Segundo, nem sequer sou marinheiro de primeira viagem nesta experiência de estar fora. Já vivi em quatro dos cinco continentes e em circunstâncias bem mais “especiais” do que estas. Fui jovem estudante em Roma, investigadora/ baby-sitter nos EUA e a certa altura da minha vida parti para Angola em missão de serviço para o Estado português. Nunca houve lágrimas nem saudades porque, afinal, I was living the dream. Foram aventuras dignas de um filme de Bollyhood, que enchem de histórias os serões e me deixaram grandes memórias.

Pois bem, face a isto, como se explica o aparecimento desta ligação carnal para com um povo que neste momento está do outro lado do mundo e no qual nunca me revi especialmente? Como se explica que passe longos minutos embevecida com programas da RTP internacional sobre a apanha da azeitona no nosso remoto Portugal (coisa que em Lisboa que me teria feito mudar de canal em 3 segundos)? Como se explica que o quadro do menino da lágrima na sala  e o galo de Barcelos na cozinha já não me pareçam a coisa mais ridícula do universo?

O retrato de um povo é feito de clichets. Alguns servem apenas para que o mundo se ria connosco (espero que seja connosco e não de nós). Outros são verdadeiros traços identificativos das gentes. Convenhamos que em qualquer lado do mundo um tipo baixo, de bigode, com a barriga a saltar por cima das calças, crucifixo no peito peludo e no braço a tatuagem do “Amor de Mãe” ou de “Angola-69” será necessariamente português. Chego a esta conclusão com todo o carinho do mundo porque nós somos assim e ainda bem que não somos outra coisa. É este povo que hoje sinto parte de mim.
Exigirá certamente uma teoria científica a explicar todo este processo emocional. Provavelmente a distância... A verdade é que nunca cantei o hino nacional com tanto empenho e emoção como no Euro 2004, no meu saudoso Cine Teatro Luanda, e na madrugada do jogo de Portugal, no Consulado de Portugal em Macau. Mas tem que haver aqui qualquer outra coisa que explique a metamorfose. Creio que é a idade: aos 20 anos eu vivia fora porque era aventureira, queria novas experiências, sentir o mundo e deixar que ele me sentisse. Hoje, com quase 40, vivo fora porque sou emigrante e quero uma vida melhor para a minha família.  Bem sei que este é um daqueles discursos típicos das entrevistas de rua da TVI, mas provavelmente a suposta maturidade da idade faz-nos dizer coisas tão profundas como esta...

Recordo-me de crescer rodeada de emigrantes que chegavam naqueles verões quentes, com penteados estranhos e pronúncias cómicas, que falavam em francês para o compatriota ver, mas praguejavam e rezavam em português. Hoje eu sou uma dessas imagens da minha infância. Abraço com respeito e carinho os clichets da minha gente. No domingo à tarde bebo Sagres e como tremoços. Quando me irrito meto as mãos na anca e aponto o dedo à cara das pessoas.  Termino a refeição com um café curto e, se possível, com alguma coisa mais forte. Só não deixo  crescer o buço porque a minha vaidade se sobrepõe à minha portuguesice.
De modo que não se espantem se um dia vierem jantar cá a casa (já se sabe que os portugas adoram comer e que para nós não há visita social que não implique um pastel de bacalhau e um Moscatel de Setúbal) e se depararem com um naperon em cima da televisão e um quadro da Amália bordado a ponto cruz. É que, afinal,  eu sou emigrante.

2 comentários:

  1. Parabens excelente post. O que diz é compartilhado por mim e seguramente pela enorma maioria daqueles que vivem fora da patria.
    Na Belgica desde 1990.

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