domingo, 6 de julho de 2014

O Mito Urbano









A nossa vida é feita de mitos urbanos.
São eles que ditam boa parte das nossas existências, quer no sentido de fazer, quer no sentido de não fazer.
Ainda hoje não me atrevo a olhar à noite debaixo da cama porque de acordo com 10025 filmes de terror está alguém escondido lá em baixo, pronto para me fazer falecer. Não entro em becos escuros porque tenho receio de acordar numa banheira cheia de gelo, com uma costura a mais e um rim a menor.
Mas os mitos que mais arruinaram a minha vida foram aquelas estúpidas histórias românticas de Hollywood. Miúda encontra homem alto e lindo, blablabla... e felizes para sempre. Ora, por causa destas histórias da carochinha desperdicei boa parte dos meus anos de miúda gira e em boa idade a correr atrás dos tipos errados, porque há sempre aquele mitos que os tipos errados um dia acordam e passam a tipos certos (obrigada Matthew McConaughey... tu e os teus filmes idiotas, bahhh ).
Vamos assentar num ponto: os mitos urbanos são apenas isso, mitos. Não acontecem, a não ser em filmes de série B (porque desde há muito que os ursos de ouro não são dados a filmes de final feliz, de modo que não há realizador que se preze, e que preze prémios, que hoje em dia faça filmes de final feliz).
A questão é que por mais realistas e lógicas que queiramos ser sempre aparece uma amiga que nos fala da prima-da-tia-da-vizinha-da-irmã-de-outra-amiga a quem um desses mitos urbanos aconteceu. Sobretudo naqueles dias em que estamos mesmo mal, lá aparece a dita e maldita amiga a contar-nos essas histórias e... pronto, volta a estúpida réstia de esperança. E assim vive muita gente até que chega aos 60 anos e dá por si perdida e sozinha, à espera do que não chega.
Este é o sermão.
Dito isto, faço uma ressalva: eu sou o mito urbano. A tal história que todos contam, mas nunca ninguém conheceu uma pessoa de carne e osso a quem essa historinha tivesse acontecido...? Acontece. Aconteceu-me a mim.
Por isso nunca sei o que dizer quando alguém me pergunta: achas que algum dia vai acontecer?
Não, não acho. É praticamente impossível. Mais raro do que sermos atingidos por dois raios na mesma noite na unha grande do pé. Mas vai daí... por veze acontece.
Por isso, e apesar de tudo, eu acredito em mitos urbanos. Acredito que de vez em quando as pessoas ficam juntas como nos filmes de série B.

Claro está que se este mito urbano pode ser real ninguém nos garante que o Boogieman não nos espera debaixo da cama...  é que alguns mitos urbanos são mesmo reais. Mesmo.

quarta-feira, 2 de julho de 2014




A (minha) gaiola dourada

Vi o filme "A Gaiola Dourada" logo que saiu e fiquei imediatamente fã. É uma fantástica sátira social que nos retrata com piada e exactidão, duas coisas que dificilmente andam juntas. Na altura vivia uma vidinha razoavelmente confortável em Lisboa, via os “Portugueses pelo Mundo” na RTP1 e conseguia comunicar com todos os taxistas  da cidade sem ser preciso usar o smartphone para fazer traduções. Na altura Macau era para mim um possível destino turístico, nunca um lar.
Mas a vida muda e em poucos meses deixei a apartamento, a família, os amigos, o trabalho, enfim, deixei uma vida, e aterrei em Hong Kong, com muitas incertezas e muitas esperanças.
Depois de chegada a Macau vi de novo o filme. Mantive a minha opinião: rigoroso no retrato, divertido na crónica, do melhor cinema feito por um português depois dos clássicos dos anos 40 da Beatriz Costa e do Vasco Santana. Mas a isto acrescento uma novidade: a certa altura dou por mim com a lágrima teimosa a correr pela cara.
Ora, esta confissão merece dois esclarecimentos. Primeiro, nunca fui particularmente saudosista nem apegada à pátria, pelo contrário, sempre me vi mais como uma cidadã do mundo, qual globetrotter de salto alto. Segundo, nem sequer sou marinheiro de primeira viagem nesta experiência de estar fora. Já vivi em quatro dos cinco continentes e em circunstâncias bem mais “especiais” do que estas. Fui jovem estudante em Roma, investigadora/ baby-sitter nos EUA e a certa altura da minha vida parti para Angola em missão de serviço para o Estado português. Nunca houve lágrimas nem saudades porque, afinal, I was living the dream. Foram aventuras dignas de um filme de Bollyhood, que enchem de histórias os serões e me deixaram grandes memórias.

Pois bem, face a isto, como se explica o aparecimento desta ligação carnal para com um povo que neste momento está do outro lado do mundo e no qual nunca me revi especialmente? Como se explica que passe longos minutos embevecida com programas da RTP internacional sobre a apanha da azeitona no nosso remoto Portugal (coisa que em Lisboa que me teria feito mudar de canal em 3 segundos)? Como se explica que o quadro do menino da lágrima na sala  e o galo de Barcelos na cozinha já não me pareçam a coisa mais ridícula do universo?

O retrato de um povo é feito de clichets. Alguns servem apenas para que o mundo se ria connosco (espero que seja connosco e não de nós). Outros são verdadeiros traços identificativos das gentes. Convenhamos que em qualquer lado do mundo um tipo baixo, de bigode, com a barriga a saltar por cima das calças, crucifixo no peito peludo e no braço a tatuagem do “Amor de Mãe” ou de “Angola-69” será necessariamente português. Chego a esta conclusão com todo o carinho do mundo porque nós somos assim e ainda bem que não somos outra coisa. É este povo que hoje sinto parte de mim.
Exigirá certamente uma teoria científica a explicar todo este processo emocional. Provavelmente a distância... A verdade é que nunca cantei o hino nacional com tanto empenho e emoção como no Euro 2004, no meu saudoso Cine Teatro Luanda, e na madrugada do jogo de Portugal, no Consulado de Portugal em Macau. Mas tem que haver aqui qualquer outra coisa que explique a metamorfose. Creio que é a idade: aos 20 anos eu vivia fora porque era aventureira, queria novas experiências, sentir o mundo e deixar que ele me sentisse. Hoje, com quase 40, vivo fora porque sou emigrante e quero uma vida melhor para a minha família.  Bem sei que este é um daqueles discursos típicos das entrevistas de rua da TVI, mas provavelmente a suposta maturidade da idade faz-nos dizer coisas tão profundas como esta...

Recordo-me de crescer rodeada de emigrantes que chegavam naqueles verões quentes, com penteados estranhos e pronúncias cómicas, que falavam em francês para o compatriota ver, mas praguejavam e rezavam em português. Hoje eu sou uma dessas imagens da minha infância. Abraço com respeito e carinho os clichets da minha gente. No domingo à tarde bebo Sagres e como tremoços. Quando me irrito meto as mãos na anca e aponto o dedo à cara das pessoas.  Termino a refeição com um café curto e, se possível, com alguma coisa mais forte. Só não deixo  crescer o buço porque a minha vaidade se sobrepõe à minha portuguesice.
De modo que não se espantem se um dia vierem jantar cá a casa (já se sabe que os portugas adoram comer e que para nós não há visita social que não implique um pastel de bacalhau e um Moscatel de Setúbal) e se depararem com um naperon em cima da televisão e um quadro da Amália bordado a ponto cruz. É que, afinal,  eu sou emigrante.