domingo, 18 de março de 2012

Menina não entra


No clube do Bolinha e sua tropa as meninas não entravam. Naqueles dias em que lia livros de banda desenhada deitava no chão do quarto, a comer gomas e a mexer nas tranças, esta era uma realidade que me era estranha. Durante grande parte da minha infância os meus companheiros de brincadeira eram também meninos. Aliás, eram sobretudo meninos, porque quando se vive num sítio onde a miudagem escasseia há que trabalhar com o que se tem, ou seja, há que brincar com quem se tem. Não sendo propriamente uma maria-rapaz acabei por me tornar uma eximia jogadora de futebol, uma menos eximia jogadora de berlinde, e dei os primeiros passos na construção de estradadas e auto-estradas para carrinhos de brincar em montes de areia.
O muro de Berlim entre nós – meninos e meninas – chegou mas tarde, nos teens years, quando começou a despertar um interesse mútuo que já não se prendia com brincadeiras – ou pelo, menos com aquelas brincadeiras – e quando passou a fazer sentido que em certas conversas só meninas, ou só meninos, estivessem presentes.
Ora, esperava eu que depois dos 30 tivéssemos resolvidos as nossas diferenças (so to say) e os grupos de tornassem definitivamente mistos. Não, pelo contrário. Parece que nunca estivemos tão afastados como agora. Claro que fazemos coisas em conjunto, nomeadamente you know what. E jantamos juntos. Fins-de-semana juntos. Férias juntos. Mas, em última instância, parece que os outros meninos os gratificam de uma outra que para nós é inalcançável, por muito que custe a acreditar. E assim damos por nós neste papel de companheiras para ouvir problemas, para ir ao supermercado, para jantares de família, mas somos remetidas à posição de espera nas tais intermináveis tardes e noitadas com os amiguinhos do costume, onde as meninas não entram.
A questão é esta: existirão certamente no mundo homens felizes que tiveram a boa fortuna de encontrar mulheres que se satisfazem em ficar em casa com os filhotes, a ver televisão ou até a ler, pacientes esperando pelo regresso do senhor, com dois copos a mais e juízo a menos. Infelizmente, eu não sou uma dessas mulheres. Não que não aprecie um serão caseiro, com um copo de vinho e um filme. Aliás, este arrisca-se a ser o meu programa preferido. Mas em companhia. A solo, já tive a minha a dose. E custa-me sobretudo a aceitar este destino quando sei que sou tão boa ou tão má companhia como qualquer menino, em variadíssimos aspectos até melhor. No meu caso isto é particularmente verdade porque – à luz dos protótipos de comportamento socialmente instituídos – grande parte da minha vida foi vivida como se fosse um menino. Cheguei a esta idade sem ter grande coisa para conversar no campo de gravidezes e bebés; passo tão pouco tempo em casa que nem sei cozinhar um jantar decente; e os meus melhores amigos são usualmente meninos. Não que não aprecie uma boa conversa com as meninas – que neste tempo em que os homens arranjam as unhas e enchem armários de roupa pode igualmente ser tida com meninos – mas, caramba, estou confinada o resto da vida a jantares de meninas e férias de meninas, como uma espécie de Apartheid sexual?
Esta divisão poderia fazer algum sentido quando as mulheres passavam grande parte do dia em casa, e os seus ambientes de conversa necessariamente se restrinjam aos filhos, à culinária, à costura e às novelas. Mas hoje em dia trabalhamos tanto como eles, ganhamos tanto como eles, viajamos tantos com eles, gostamos tanto de um copo como eles, logo, porque não somos um deles?
Em bom rigor já estive em mais sítios do que a maior parte dos homens e já vi mais mundo do que a maior parte dos homens. Trabalho mais horas do que a maior parte deles, vi mais futebol, caramba, tenho-os mais no sítio. Li mais livros, tenho mais opiniões. Sou capaz de não ser tão apreciadora de decotes de meninas, de arrotos e de coçar partes intimas. Mas se é esse o critério de exclusão, então, pondero que se calhar sou eu a não querer fazer parte do grupinho.
A questão nem se coloca só em relação às caras-metade. Até nas amizades se nota algum desconforto neste campo, como há dias desabava um amigo sobre o incomodado que se sentia ao discutir futebol comigo e com as restantes mulheres daquela mesa. E de repente senti-me de novo à porta da casinha de madeira, com aquele letreiro a barrar a entrada: “Menina não entra”. E ali ficámos, lost in translation, só porque um de nós faz xixi de pé e o outro sentado.

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