quarta-feira, 30 de março de 2011

Um pensinho de nicotina para viciados emocionais


Vícios. Uma coisa terrível. Que nos consome. Que nos arrasta para a penúria. Que esgota as nossas forças. Há quem fume 2 maços de cigarros por dia. Quem seja tão dependente do álcool que chegue a beber água-de-colónia. Quem tenha pilhas de caixas de sapatos a forrar as paredes de casa. E quem esteja viciado numa pessoa. Não em pessoas, note-se. Não me refiro propriamente a esses animais sociais que animam qualquer festa. Refiro-me a uma particular pessoa.
Ora, se existem os alcoólicos anónimos, porque não exsitir os apaixonados anónimos? E clínicas de reabilitação para apaixonado-dependentes. Mais fácil ainda, porque não inventar um raio de um pensinho de nicotina para viciados emocionais?
Quero crer que já todos passámos por isso. Assim como um toxicodependente começa a tremer e a transpirar quando lhe falta a droga, também o nosso coração começa a bater mais forte com o telefonema que não chega. Sentados no sofá, telemóvel entre as mãos, olhos no visor não vá aquela porcaria estar no silêncio sem nos apercebermos, e ali ficamos, na dúvida se devemos ou não ligar. E que tal uma mensagem? Parece menos intrusivo. Mas assim não lhe ouvimos a voz. Mas…e se ligarmos e ele não atender? E se por algum motivo o registo da chamada se perder no meio de tantas outras não atendidas e ele nunca souber que ligámos? Mas não será (demasiado) patético sermos nós a ligar?
Até que o telefone toca. E vamos a correr. É só uma amiga tonta a lamentar-se daquele namorado horrível que não a deixa estar tempo suficiente nas lojas. E temos que a despachar com a desculpa de outra chamada em linha, não vá ele querer ligar e estar o telefone ocupado.
Até que toca de novo. É mesmo ele. Ofegantes, tentamos desacelerar o coração e fazer aquela voz normalíssima de quem passou por acaso pelo telefone naquele mesmo instante, no meio de uma agitada vida social.
E se ele não liga mesmo? Resta pedir a um amigo - daqueles que nos limpam as lágrimas e nos aturam as birras – para nos dizer o óbvio, aquilo que já sabemos mas que ainda assim precisamos de ouvir de outra boca que não a nossa para se tornar mais verdadeiro: “Não lhe ligues. Acabou”.
Vícios, esses malandros disfarçados de paixão, que anos arruínam a existência. Que fazer para ganhar esta batalha?
Uma amiga minha ia para o ginásio correr como se não houvesse amanhã. Outra encheu a agenda de tantos eventos sociais que mal dormia com tal número de compromissos. Outra começou a passar tanto tempo no trabalho que quase se diria que dorme debaixo da secretária. Enfim, os viciados fazem coisas estranhas para tentar superar os vícios ou, pelo menos, para tentar levar uma vida normal com os ditos agarrados a si.
Como qualquer outra droga, estas pessoas raramente nos fazem bem. Não nos fazem mais felizes. Uma parte de nós sabe que estaríamos melhor sem elas. Mas a outra parte – a parte idiota, vá lá – vai alimentando esta addiciton com memórias de momentos felizes, muitas vezes mais irreais do que reais.
Mas, tal como os demais viciados, há um dia em que alguma coisa acontece cá dentro da cabeça. Um click, um momento iluminado, em regra um grande desgosto, daqueles choques emocionais que nos electrocutam o coração.
Não passa por mero acaso. O vício não passa assim. É necessário, imprescindível mesmo, submeter-nos a um tempo de desintoxicação durante o qual é admitido rir, chorar, beber, usar saias mais curtas e saltos mais altos. Em circunstâncias muito, mas mesmo muito excepcional, até está autorizado uma pequena leviandade. O que for necessário para nos mantermos à tona, dentro dos limites daquilo que cada um permite a si próprio para se conseguir olhar ao espelho, o que, já se vê, varia de acordo com as barreiras morais de cada um de nós.
O quer me traz de novo à minha teoria inicial: quão mais fáceis seriam as coisas se tivéssemos o tal pensinho de nicotina. Muita dor, muita patetice e muitos traumas se evitariam.
Mas provavelmente precisamos mesmo de percorrer este caminho árduo e espinhoso, para que da próxima vez que estivermos prestes a apaixonarmos termos bem vincada na memória o desfecho que nos espera.
Se beber não conduza. Se viver, não se apaixone.

domingo, 27 de março de 2011

Toda a felicidade que houver no mundo


Desejo-te o melhor. Toda a felicidade que houver que no mundo. O que desejo para mim desejo para ti também.
Que encontres a tua meia-laranja, quer fiques com ela ou a deites fora.
Que sejas o que sempre sonhaste.
Cheguei a convencer-me que eu faria parte desse sonho, mas as pessoas convencem-se de coisas tão tolas que quase se pensaria que tolas são as pessoas.
A verdade é que a felicidade é um bem escasso, como diriam os economistas. Um pouco como a manteiga em tempo de guerra. Nós somos muitos e a felicidade é pouca. E como se a sua escassez não bastasse ainda por cima é distribuída de forma bem pouco equitativa. Serão os ricos mais felizes? Os idiotas? Os génios? Os magros? Os gordos? Os casados? Os solteiros? Os mesquinhos? Os bonzinhos? Será que a felicidade é um gene do nosso ADN? Visitei muitas bibliotecas e muitos sites mas ainda não descobri o critério que faz com que algumas pessoas desejem levantar-se na cama para poder viver mais um dia e outras só o façam porque assim têm menos um dia para viver. Nem sequer me parece credível a velha teoria do Karma e do Dharma. Porque assim de repente consigo enunciar umas cem pessoas que são tão linda por dentro quanto infelizes por fora.
Eu, para mim, já nem quero toda a felicidade que houver no mundo. Quero apenas um bocadinho, não vá ter uma overdose de felicidade e acabar por morrer feliz. O que seria o cúmulo da ironia: um tipo é finalmente feliz e no instante seguinte morre.
A verdade é que talvez eu já tenha esgotado a quota de felicidade que me coube. É bem capaz desta questão ser regulada nos mesmos termos das relações internacionais, ou seja, tal como se distribuem pelos Estados quotas de poluição, Vai dai, eu já devo atingido o meu limite. É que quando olho para mim - para nós - nas fotografias, sei que naquele instante em que a câmara disparou eu era tão, mas tão feliz, que provavelmente já fui o mais feliz que alguém pode ter sido. Aquela era mesmo eu. Não era uma actriz, nem um desenho animado. Era eu feliz.
Ainda assim, ando a ver se encontro pelo menos uns gramas de felicidade. Talvez no mercado negro consiga pagar por ela um preço não muito elevado. Porque nos supermercados e locais de comércio habitais já há muito se esgotou. Foi levada por todos os primos e primas, amigos e amigas, que à noite chegam a uma casa quentinha e cheia de gente.
Muito me admita que o Continente não tenha pendurado nas suas prateleiras um aviso do género: “Prezado clientes, atendendo ao drástico decréscimo de felicidade a nível mundial teremos que racionar a sua aquisição, de modo que cada pessoa só poderá levar consigo um pacote. Gratos pela atenção, pedimos desculpa pelo incómodo”.
A questão é que quando isto acontece vamos reclamar com quem? Tenho para mim que o senhor Belmiro tem muito pouco a ver com a miséria das nossas vidas. Se ao menos fosse católica sempre poderia reclamar Com Deus. Talvez passar pelo Céu e escrever no Livro de Reclamações, como é meu hábito. Mas – como já se previa – não tenho a felicidade de ser possuída por uma fé no divino, de modo que mais não me resta senão reclamar comigo própria.
Porque a verdade é esta mesma: a religião, seja ela qual for, tem ao menos o grande mérito de nos permitir culpar alguém pelas nossas mágoas e frustrações. São os desígnios divinos. Tudo corre mal, mas não baixamos braços porque, afinal, Deus providenciará. E como Ele trata de tudo podemos nós viver mais descansadamente a nossa miserável vida. Já eu, que sou agnóstica, não posso apontar –Lhe o dedo. A minha fé resume-se a mim mesma, de modo que sou eu quem tem que providenciar por dias melhores ou bem posso chafurdar na tristeza.
Mas isto, tudo isto, são meras reflexões colaterais a propósito da felicidade. Aquela que te desejo a ti. Quero encontra-la, embrulhá-la e dar-ta de presente. Toda a felicidade que houver no mundo, mesmo que assim eu fique sem nenhuma para mim.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Amor à primeira amizade?


A minha religião é a do amor à primeira vista. E não é que seja intolerante, mas admito que tenho alguma dificuldade em perceber o amor à primeira amizade.
Como é que a coisa funciona? Um dia acordamos e percebemos que aquele amigo que conhecemos há anos, com o qual partilhámos lágrimas, bebedeiras, charros, desgostos de amor, confidências, e até detalhes de alguns truques sexuais, subitamente, se tornou o amor da nossa vida? Notem bem que não estou a dizer que é impossível de suceder. Gostava era que me explicassem como é que a coisa acontece… a ver se acontece comigo.
Acorda-se e já está? Bate-se com a cabeça na esquina da mesa e já está? Faz um xixi e já está?
É que eu sempre tive como melhores amigos os meus namorados. Mas a ordem cronológica das coisas foi a inversa: primeiro tornaram-se namorados e depois melhores amigos. Até já podiam ser amigos antes disso, mas… enfim, mais daqueles conhecidos com quem se sai de quando em vez e se bebe um café no meio de um grupo alargado. E alguns nem isso.
Porque eu, já se sabe, eu sou um terramoto. Eu sou de emoções fortes, de intensidades tão intensas que fazem com que ao pé de mim um vulcão seja uma mera fogueirinha de praia. De modo que do meu historial amoroso sempre fizeram parte paixões assolapadas ao primeiro cruzar de olhos. Com flechas de Cupido e tudo o mais a que as histórias fulminantes de amor têm direito. Depois sim, vem a amizade, a partilha, a confidência, a ponto de poder dizer que o final das minhas relações foi (sobretudo) devastadora porque mais que perder um amor perdi um melhor amigo.
Mas isso são coisas passadas, bem enterradas cá dentro, naquele sitio onde nem vale a pena remexer.
Ora, ultimamente dou por mim a pensar como seria essa “coisa”, esse “fenómeno científico” de me apaixonar por amigo.
Esta hipótese soa-me particularmente estranha porque em boa verdade eu estabeleci uma espécie de Apartheid nas minhas relações sociais.
Assim, de um lado da barreira tenho os meninos (por vezes tão próximos que são quase meninas), os meus amigos, em quem confio, que nunca me deixam mal, nunca chegam tarde, nunca mentem, nunca deixam de gostar de mim.
Do outro lado, numa espécie de ghetto emocional, tenho os gajos. Os tipos. Esses homens altos que me fazem perder a paciência, a cabeça, o juízo e, na maior parte das vezes, o coração. Os que me mentiram, me traíram, me deixaram cair.
Há dias um desses amigos acusou-me de ser close-minded, limitada, tacanha mesmo, por permitir que os “de lá” passem para o “lado de cá” e se tornem amigos, mas nunca que os “deste lado” pisem espaço algum do “lado de lá” e passem a mais que amigos.
Ora, eu posso ser teimosa e caprichosa, mas de vistas curtas é que não. Não fiquei propriamente ofendida com o reparo, mas não posso evitar pensar no assunto. E chego a desejar que me apareça por aqui um qualquer Nelson Mandela que me acabe com este Apartheid emocional. Que me mostre que são todos iguais, para o melhor e para o pior. Eu sei que sim, mas preciso de uma confirmação adjacente, que me diga que os meus meninos também mentem (ainda que não a mim), também traem (mesmo que não a mim), também são filhos da puta (embora nunca o tenham sido comigo). Mas, ao mesmo tempo, que podem ser românticos, e especiais, e arrebatadores e deixar-me em pele de galinha.
Até hoje nunca tal aconteceu, mas, já sabe, nunca digas desta bolacha não comerei.
E confesso que sei com toda a clareza que já perdi oportunidades únicas de ter coisas especiais com pessoas especiais, que tiveram a infelicidade - ou melhor, a infelicidade foi minha, não deles – de se tornarem antes de tudo meus amigos, meus confidentes, e depois dessa relação fraternal já não sobrou espaço para mais nada.
Termino esta reflexão com um episódio de um das minhas vidas passadas. Eu estava na praia com ele. Doido. Nerd completo. Inadaptado social. Enfim, o tipo de gente com quem acabo por sentir empatia. Olha para o céu e começa a cantar: “sabes bem que os opostos se atraem”. E eu, no meio das leituras cor-de-rosa, respondo da minha espreguiçadeira. “é verdade não o podes negar”. Ele levanta-se de rompante e afirmou, quase em pânico: “nunca conheci ninguém que conhecesse o resto da letra. E disse para mim mesmo que no dia em que encontrasse alguém assim ela seria a mulher da minha vida”.
Nunca tal aconteceu. E não apenas porque a fasquia dele estava baixinha (afinal, quem nunca viu anúncios ao martini?), mas porque ele era o meu melhor amigo, o meu irmão, aquele a quem eu apresentava namoradinhos de fraca qualidade. E recordo bem as palavras que ele disse a um desses projectos de namorado: “Só há uma coisa que tens que saber acerca dela: quando te começar a ligar às 4 da manhã a falar de dramas existenciais… esquece! Passaste a “amiguinho” e nunca mais vai ter nada com ela”. Na altura eu ainda não tinha compreendido isto, mas ele sabia-o porque já aí me conheci melhor que ninguém.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Don’t ask, don’t tell


Há coisas que não se devem perguntar, desde logo porque não se devem responder. Percebo perfeitamente a política tomada no exército norte-americano em relação a homossexuais: a orientação sexual é (devia ser) irrelevante para o desempenho de cada um na defesa da Nação.
Eu assumi esta mesma política face à minha balança: eu não lhe pergunto quanto peso e ela escusa assim de me dizer. E vivemos ambas felizes, eu na minha ignorância, ela no seu silêncio. Ao longo dos anos fui até aprendendo uns truques sobre como enganar a malvada. Pezinho mais para a frente, pezinho mais para trás. Força no calcanhar ou no dedo gordo do pé. E sempre que me obrigam a subir a uma balança em público sublinho e resublinho as gramas de roupa que tenho em cima, o copo de água que acabei de beber e até o peso brutal destes caracóis que teimam em fazer oscilar o ponteiro da balança.
Não que eu desconheça completamente as minhas variações de peso. Muito pelo contrário, conheço-as como ninguém. Basta-me agarrar um bocado de carnuça para logo perceber o diâmetro da coisa. E, se dúvidas persistirem, sempre temos aqueles jeans bem justinhos, comprados em tempos de faculdade e dos meus 40 e tal quilos, que servem para demonstrar o grau da hecatombe dimensional do meu corpo.
Isto é uma coisa. Coisa diferente é dar um valor ao meu peso. Determinar-lhe um número.
É que não se já sei se já se aperceberam mas as pessoas vivem muito mal com quantificações. Os números – dos mais variados tipos – são o calcanhar de Aquiles de todos nós. Há muitos anos atrás o Futre irritou-se com a Manuela Moura Guedes porque ele lhe perguntou na televisão quanto é que ele ganhava. Os arguidos têm o hábito de se remeter ao silêncio quando o Ministério Público lhes pergunta quantos crimes cometeram. O Ministro das Finanças fica sempre incomodado quanto a oposição o questiona sobre quais os novos números das mais recentes medidas de austeridade. Nós, os sportinguistas, não gostamos de falar de quantos golos já sofremos. Uma amiga minha não tolera que lhe perguntem com quantos homens já dormiu. E, vá lá, não há homem que aguente ser questionado sobre quantos centímetros mede o seu pénis.
Ora, os centímetros (ou milímetros) da pilinha masculina estão para os homens na mesma relação que os quilos que a balança marca estão para as mulheres. São assuntos sensíveis para ambos. Por isso, se não há questionário que indague os homens sobre essa questão tão melindrosa, porque raio é permitido perguntar isso às meninas?
Ainda há dias estava eu num hospital, a preparar-me para um exame médico, quando me passaram para as mãos o questionário da praxe, onde ao lado de perguntas relevantes como alergias e doenças de família, lá vinha a questão do peso. Hesitei. Escrevi. Risquei. Escrevi de novo. Não me contive e tive que indagar sobre a pertinência de tal pergunta, quando nunca ninguém se lembraria de perguntar a um senhor, antes do TAC ou da radiografia, quanto media a respectiva pilinha. A senhora do outro lado do balcão foi compreensiva porque, afinal, falamos a mesma linguagem. Mas, meus caros, garanto-vos que se o meu interlocutor fosse um cavalheiro lhe perguntaria se me queria tomar o peso e ser ele mesmo a escrevê-lo. Ou melhor, rectifico – se fosse um cavalheiro alto e moreno – dirigia-lhe esse pedido. Mas como não era não me restou mais nada senão mentir com quantos dentes tinha na minha boca (que, aliás, se estivesse mais fechada, me teria feito mentir menos)
A verdade é esta: o peso de uma mulher interessa a um grupo restritíssimo de pessoas: à costureira, ao personal trainer e à pessoa com quem mantem intimidades, que mais não seja porque a certa altura acabam por estar um por cima e outro por baixo Não interessa a mais ninguém.
De modo que não pergunte. Porque se quer mesmo uma resposta vai ter que me levar ao colo.

sexta-feira, 18 de março de 2011

A vida debaixo do colchão


Um dos contos preferidos da minha não longínqua infância constava de uma colectânea famosa na altura (As Histórias do Avozinho) e contava o drama de um velho tacanho e avarento que “guardava com carinho, o seu rico dinheirinho” debaixo do colchão. “Aquilo de nada servia, mas ele não se importava, e toda a sua alegria no mundo se resumia no dinheiro que contava” (juro-vos que não estou a ler e sim a debitar de memória, fruto das muitas vezes que li o dito conto). Mas um dia veio uma tempestade tremenda e a enxurrada arrastou-lhe o colchão com todo a sua pequena fortuna.
Há pessoas que vivem assim, com a vida debaixo do colchãozinho. Deixam de fazer as coisas – em suma, deixam de viver – há espera que algum dia aconteça alguma coisa. O que seja. Que ganhem muito dinheiro. Que arranjem o emprego dos seus sonhos. Que um ex-namorado se arrependa e volte atrás. Há espera que fiquem doentes, ou que morram até. Não sabem quando alguma destas coisas vai suceder, eu mesmo se ocorrerá de todo. É que com excepção da sempre certa morte tudo o mais é incerto.
Mas por medo, tacanhez, precaução extrema, ou simplesmente inabilidade para viver, não se comprometem com nada. Quase como quem nunca sai da ombreira da porta à espera que a campainha toque.
Sei de quem não gaste um tostão na ansiedade de dias sombrios, com despesas tamanhas que exijam todos os cêntimos dos seus cêntimos. Terríveis doenças com medicamentos caríssimos, hecatombes financeiras, roubos e incêndios, nenhuma desgraça é suficientemente impossível para ser invocada no momento em que se poderia usar algum daquele dinheiro para comprar uma réstia momentânea de felicidade.
Sei de quem não queira ter filhos enquanto não tive uma situação económica estável, isto apesar de contar com um dinheiro certo ao fim do mês e estar num daqueles empregos é que ninguém é despedido (mesmo que rebente com a secretária) ainda assim procura uma estabilidade que nem sei sequer se existirá nesta galáxia. Quão mais estável pode alguém estar? Haverá que criar raízes e deixar crescer um tronco como uma árvore…
Sei de quem vive atormentado pelo aparecimento de uma hipotética e eventual doença que corre na família. Não há regra matemática que garanta que venha a sofrer dela. Mas a morte de dois ou três parentes próximos às mãos da dita doença arreigou naquela cabeça a ideia que um dia lhe calhará essa tão triste sorte. De modo que se fechou em casa, e se fechou ao mundo, porque não vê motivo para vínculos com algum ser humano, já que está destinado a partir em breve. Certamente partirá, como todos nós. Não sabemos é quando. Mas até lá vive como se estivesse morto, talvez na crença de que assim a verdadeira morte lhe custará menos.
Sei de quem não compra uma casa porque espera e desespera para encontrar alguém com quem a dividir. Vive num cantinho acanhado, com vista para a parede do vizinho, consulta anúncios de T2 e T3, mas não se decide por nenhum deles, porque ainda aguarda por um príncipe encantado com quem partilha o castelo, e que a ajude a decorar com papel de ursinhos e uma cadeira de balouço o berçário para as muitas que crias que espera ter.
Sei de quem não partilha a a vida com ninguém porque um dia conta fazer as malas e sair daqui para assentar base no outro lado do mundo. É um sonho, e não uma certeza. É um objectivo futuro, e não uma realidade presente. Mas passa os seus dias de mala quase feita, sem assumir encargos patrimoniais ou emocionais, não vá ser que amanhã o telefone toque.
Estas pessoas não vivem. Estão apenas a passar o tempo até que alguma coisa aconteça. E como pode bem suceder que a dita nunca venha a ocorrer arriscam-se a um dia acordar e ver que tudo passou por eles, mas eles não ficaram com nada para si. Um pouco como espectadores da sua própria vida, que nem se interessam pelo enredo da história, mas apenas pelo seu final. Passam os dias (não os vivem, suportam-nos) agarrados à uma fugaz esperança ou a um improvável temor. E enquanto isso escondem a sua vida debaixo do colchão.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Se já se fazem cremes assim…


Foi uma péssima ideia ter perguntado à senhora da perfumaria que creme me recomendava ela para as rugas, porque logo de seguida me vi rodeada de frascos e frasquinhos, uns para as rugas, outros para o inchaço, outros para coisas que eu nem sabia que tinha. Mas um deles era claramente o Mourinho dos cremes, so to say. A senhora pegou no caixa, pôs ar de circunstância, aprumou a voz, e disse: “Este é claramente o melhor. É um creme inteligente, na linha dos produtos inteligente de que agora se fala. Sabe exactamente onde actuar e como actuar”,
Eu fiquei pasma. Estarrecida mesmo. Não pelo creme, entenda-se. Mas pelos achievements da ciência face aos fracos progressos de Deus ao conceber a espécie humana (eu até sou darwinista, mas achei que nesta particular ficava melhor invocar o nome divino). Então, já se fazem cremes inteligentes, mas… homens ainda não?
E foi isso mesmo que não me coibi de dizer à senhora:
“Desculpe, não tem a mesmíssima coisa em homem? Não tem um homem inteligente que saiba exactamente o que fazer e quando?”
Que me desculpem os meus amigos meninos. Certamente que também se queixarão das nossas limitações femininas, mas, como compreenderão, eu, pela minha parte, estou mais familiarizada com as masculinas. Além disso, convenhamos que em matéria de sentimentos as mulheres são uma espécie mais evoluída.
Se o creme sabe que a minha ruga está no canto direito do olho não vai actuar no canto esquerdo. Então, porque é que se vocês sabem que no dia dos namorados queremos ver uma comédia romântica, daquelas que terminam bem e nos enchem de esperança em dias melhores, insistem em trazer um filme de terror do clube de vídeo?
O creme não vai gastar toda a sua força num só sitiozinho, mas sim espalhar-se inteligentemente pelas várias zonas vítimas de desastre. Porque é que vocês gastam todo o vosso charme e empenho nas primeiras semanas da relação e depois perdem todo o empenho, criatividade e paixão, e nos tratam como dados adquiridos?
O creme sabe exactamente o sítio onde deve actuar. A concreta ruga que tem que matar. Porque é vocês nunca sabem o que dizer quando nos vêm a chorar?
A indústria e tecnologia têm-se esforçado bastante por tornar melhor a vida das mulheres. Criaram tampões para não termos que usar aquela espécie de fralda, e depois disso aperfeiçoaram-nos para os mini tampax que cabem em qualquer mini bolso. E com eles podemos fazer quase tudo: patinar, andar a cavalo, andar de bicicleta… desde que se assegurem que estão bem colocados. Permitem-nos mudar a cor do cabelo e até a cor de olhos, frisar e desfrizar os caracóis, introduzir extensões para disfarçar cortes exagerados à cabeleira. Criaram jeans que nos levantam tudo o que há para levantar, esconder o que há a esconder e acrescentam curvas onde não as há. Mas antes já tinham criado soutiens para enganar o observador mais incauto que não consiga discernir carninha verdadeira de almofadinhas de esponja. E para não passarmos vergonha no momento de tirar o Wonder Bram eis que os cirurgiões já nos conseguem enfiar no mamilo saquinhos de silicone, que são frios ao toque, mas fazem muito bem as vezes da the real thing. As cozinhas estão cheias de electrodomésticos de 32.º geração, que permitem poupar tempo suficiente nas lides da casa para preparar doutoramentos, ir ao ginásio ou simplesmente lanchar com as amigas.
Dito isto, porque carga de água os Einsteins deste mundo ainda não inventaram um “homem inteligente”? Não digo mais, mas pelo menos tão inteligente quanto um creme para as rugas.

sexta-feira, 11 de março de 2011

FIRST LOVE IS THE DEEPEST?


Lamentava-se há dias um amigo de como gostaria de ter sido alguma vez o primeiro amor da vida de alguém. Respondi-lhe que, se o não tinha sido até agora, já dificilmente o seria. É que depois dos trinta todos aqueles com quem nos deparamos pelo caminho já trazem consigo uma pesada bagagem emocional, e muitas vezes física. Ao lado de desgostos, alegrias, momentos de felicidade imensa, histórias mal contadas e, decididamente, mal terminadas, por vezes carregam ainda mulheres das quais se divorciaram e filhos dos quais nunca se vão divorciar (de modo que, quanto a estes, só temos duas hipóteses: ou os amamos e vivemos com eles ou os odiamos e vivemos com eles).
Isto para dizer que a utópica possibilidade de ser o primeiro amor de alguém vai diminuindo abruptamente com o decorrer do tempo, dada a quase total improbabilidade de aos 40 anos encontrar um espécime da nossa mesma idade que até então se tenha furtado a todo o tipo de contacto amoroso,
Mas, para além disso, quem quererá efectivamente ser o primeiro amor de alguém? Ou seja, escapa-me o interesse em ser o estádio inicial de um percurso que obviamente não vai terminar ali e, se terminar, tal deve-se a um erro crasso de julgamento de quem pensa que a pessoa que primeiro nos encanta vai ser aquela que mais nos encanta. Quando ficamos com a primeira coisa que nos surge pela frente nunca temos ponto de comparação. Pensamos que aquela é a melhor que existe, mas creio que secretamente se mantém o desejo de experimentar outras. Pode bem suceder que no final regressemos ao tal primeiro amor, mas só devemos tomar essa opção depois de arregalarmos os olhos para o mundo, nos apaixonarmos e desapaixonarmo-nos, e concluirmos por fim que aquele é o nosso lugar. Não podemos é ficar porque temos medo de partir.
Pela minha parte nunca quis ser um primeiro amor. Bem pelo contrário, quero ser o último. O último amor de alguém que já conheceu muitos outros na vida e que ao chegar a mim vai poder dizer, conhecedor do que existe por aí e do que viveu com essas outras pessoas, que eu sou aquela com quem quer ficar. Este juízo não pode ser feito nem aos 18 nem aos 20 anos, quando o nosso mundo é tão pequenino que qualquer presença o enche.
Quanto a mim, posso agora finalmente apreciar aquele com quem estou precisamente porque estive com outros antes. Mas segui o meu caminho sem eles. Do meu primeiro amor tenho recordações vagas. Nunca me vai desaparecer da memória, é certo. Não esqueço o meu primeiro beijo, tal como não esqueço a primeira vez que andei de avião ou que acordei de ressaca. Mas a verdade é que há muita gente que passou pela minha vida e que não consigo apagar. Não significa isto que tenham sido os meus maiores amores. A razão pode ser, simplesmente, terem sido os que mais me magoaram. Ou os que mais me mentiram. Há tantos motivos, e tão relevantes, pelos quais não esquecemos alguém que muitas vezes o motivo torna-se bem mais importante do que esse alguém.
Todos os amores são profundos enquanto duram. Não têm que ser bons. Podem ser profundamente maus. Os meus eleitos são os profundamente intensos. Depois de terminaram pode restar uma leve lembrança ou uma marca impressiva. Aqueles que nos marcam tornam-nos, umas vezes, melhores pessoas, outras vezes piores. Nunca ficamos exactamente iguais. É o conjunto de todas essas marcas, como uma manta de retalhos de paixões que o nosso amor presente vai encontrar. Esse amor presente é sempre o maior, o mais profundo, o mais intenso. E se o for o suficiente será também o último.

terça-feira, 8 de março de 2011

O ponto de não retorno


Quando fiz a minha primeira tatuagem ia desmaiando a meio tal era a intensidade da dor. Com o torso deitado em cima de uma mesa, respirava sofregamente como se estivesse em pleno curso Lamaze. A namorada do artista (do verdadeiro artista) segurava-me nas mãos e pedia-me para ter calma, mas as lágrimas fugiam-me dos olhos e começaram a escorrer-me pelas faces. Quem diabo me manda a mim iniciar-me no mundo das tatuagens em plena coluna vertebral, ali aquele sitiozinho onde a agulha só tem osso para perfurar e nem uma grama de chicha mole para aliviar a dor? A páginas tantas recordo-me de levantar a cabeça e de dizer ao meu torturador: “Vamos parar com isto por favor. Deixe-me assim mesmo como estou”. Ele olhou para mim perplexo. A namorada olhou para mim perplexa. “Podes ir, mas… queres sair com isto a meio? Um rascunho de dragão na pele como se fosse um borrão?”.
M…!
Estava lixada. Tinha entrado no ponto de não retorno. Poderia ter dado um passo atrás antes, enquanto ele preparar a agulha e toda a panóplia de aparelhagem necessária para me marcar para a vida, mas agora era pura e simplesmente tarde de mais. Por outras palavras, eu podia de facto sair dali assim mesmo, mas a verdade é que que por maiores que fosses as moléstias e incómodos que adviriam da continuação do processo, maiores ainda seriam as moléstias e incómodos de o deixar a meio.
Isto é o ponto de não retorno. Aquele ponto em que bem desejaríamos regressar atrás, ou melhor, desejaríamos nem sequer ter entrado naquele filme. E, facticamente, podemos fazê-lo. Isto é, não estamos algemados, nem temos uma pistola apontada à cabeça, nem estamos sob as ordens de nenhum ditador que nos empurre para a linha da frente. Simplesmente, naquele preciso momento qualquer passo atrás sair-nos-ia mais caro que o passo em frente.
Certamente que já todos passaram por experiências destas.
Não vamos mais longe: os meus amigos meninos sabem bem do que falo. Quem não ficou com a pilinha estalada no fecho das calças? Claro que prefeririam deixar a coisa como está e passar o resto da vida com metade do prepúcio de fora. Mas como tal hipótese é inviável para qualquer um que aspire a um mínimo de vida social e, desde logo, não queria ser preso por atentado ao pudor, não têm outra hipótese senão voltar a puxar o fecho para baixo e libertar a dita cuja daquele jugo opressor. Dor, sim. Mas não há possível volta atrás.
O mesmo vale para todas as vezes em que espalhamos cera quente nas axilas ou nas virilhas, com a consciência que não existe outra hipótese senão tirar aquele emplastro com um puxão, na expectativa de que não venha pele atrás, porque passar o resto dos nossos dias com cera colante na pele seria pouco prático e nada abonatório para contactos amorosos.
Outros pontos de não retorno são as últimas semanas antes da entrega de uma tese (eu bem queria desistir, ir para a rua beber copos e viver o pouco que resta da minha juventude tardia, mas já investi demasiado em estudos e artigos para abandonar agora este suplicio) ou a discussão que iniciámos com o chefe (teria feito melhor em estar calada, mas agora que me pus em bicos de pés e lhe falei de igual para igual não posso sair dali de cabeça baixa e com o rabo entre as pernas).
Uma forma diferente do ponto de não retorno é o momento em que atingimos o êxtase com uma experiência nova e depois já não conseguimos voltar a fazer as coisas como fazíamos antes. Recordo a detalhada explicação de um amigo meu sobre a forma como tinha ligado as colunas à aparelhagem, à televisão, ao PC e ao raio que o partam, e me confidenciava que já nem sequer ponderava a hipótese de ouvir musiquinha como sempre o fizera até ter aquela ideia genial. É que o ponto de não retorno mostra-nos um brave new world, depois do qual já nos é insuportável viver como meros mortais.
Assim são certas relações.
Há pessoas que preferiríamos nunca ter conhecido. Não porque sejam más pessoas, longe disso. Mas porque a relação é tão destrutiva, tão pouco gratificante, tão exigente, tão … tão menos tudo e tão mais tudo, que racionalmente concluímos que estaríamos melhor caso nunca o/a tivéssemos conhecido, nunca tivéssemos aceitado o convite para jantar, nunca nos tivéssemos apaixonado. Porque, afinal, não se sente a falta nem se lamenta aquilo que nunca se teve.
Porém, todavia e contudo, quando finalmente temos consciência desde facto já entrámos no tal ponto de não retorno. Estamos de tal forma envolvidos no turbilhão em que a nossa relação se tornou – e, por arrastamento, a nossa vida – que embora possamos heroicamente sair, não o podemos fazer porque não o queremos fazer. Porque ele (ou ela) já se nos entranhou na pele, já se apoderou dos nossos pensamentos, já faz tão parte de nós como estas teclas fazem parte deste teclado.
Claro que poderíamos viver sem ele. Mas… a que preço? Como o poderíamos alguma vez esquecer? Como poderíamos sentar-nos ao lado de outra pessoa que não cheira como ele, nem fala como ele, nem tem aquele tom de voz? Como poderíamos seguir a nossa vidinha sabendo que ele não está nela?
Há relações que não são felizes. Mas mais infelizes seriamos nós sem elas. Este é o ponto de não retorno.

sábado, 5 de março de 2011

O efeito “pessoa feliz”


Há dias assim. Tudo começa bem… até que começa a correr mal.
Acordamos bem-dispostos, etc e tal, mas depois tropeçamos mal pomos um pé fora de casa.
Chegamos à paragem do autocarro e a fulana que lê a revista de cusquices nem sequer se desvia para nos deixar sentar, de modo que ali ficamos encolhidas num cantinho do banco enquanto ela, no meio do dito, se estica para todos os lados como se estivesse no sofá da sua sala.
Vamos a subir para o autocarro e alguém nos passa à frente na sofreguidão de ser a primeira.
Imprimimos o documento errado.
Sujamos a secretária com café.
E, como se tudo isto não bastasse, chegamos ao ginásio, já cansadas antes mesmo de calçar os ténis, arrumamos a nossa tralha no cacifo mais próximo, e vamos fingir que ainda há esperança de recuperação para o nosso corpo. Regressamos arrastando-nos pelo chão, e só queremos um bom banho e que ninguém nos chateie. Mas porque não somos umas bestas pedimos amavelmente à pessoa do lado que está sentada frente ao nosso cacifo se nos dá licença para podermos tirar as nossas coisas. Mas, porque há de facto pessoas que são umas bestas, e a nossa vizinha do lado calha a ser uma delas, a tipinha olha para nós, com o ar mais aborrecido que alguma vez se viu neste lado do universo, e nem se mexe. Como não temos outra opção ficamos ali a olhar para a dita cuja, na expectativa que ela se aperceba que se quer mordomias terá que construir em casa o seu próprio local de treino. Finalmente levante aquele rabo gordo do nosso lugar e diz (sentem-se bem e não caiam da cadeira com esta):
“Mas porque é que ficou neste cacifo? Devia deixar um de intervalo! Há tantos cacifos vazios ali ao fundo!”
Ora, euzinha, no meu estado normal, ter-lhe dado as informações para ela ir ter a um certo sitio que eu cá sei, porque uma senhora é uma senhora mas uma mula é uma mula e merece ser tratada como tal. Mas euzinha estava cansada, transpirada, esfomeada, e já agastada pelo dia tenebroso que me calhara na lotaria. Por isso euzinha respondeu apenas: “Fiquei aqui porque quis ficar aqui”.
Despi-me, fui para o chuveiro com o arsenal de cremes e champôs, e enquanto a água quente me batia na moleirinha pensava de mim para mim que a minha existência no mundo era não mais que dar pérolas a porcos. Fui invadida por aquele desânimo que se apodera de nós quando percebemos que o mundo não é cor-de-rosa nem feito de algodão doce, mas um sítio sombrio povoado de gente pequenina, limitada, mal-educada, snob. Voltei para o meu sítio, o meu cacifo agora liberto de investidas externas, e enquanto me limpava só pensava o quanto irritada eu estava e na pouca paciência que me restava. Dá que tenha respondido mais secamente à voz que me perguntou se queria utilizar o secador. Não fui rude, isso não. Mas seca e concisa, sem sorriso para oferecer.
A páginas tantas dei pelo facto da minha toalha estar a no espaço de outra pessoa – a pessoa da voz – e pedi-lhe desculpa pela invasão de território. Ao que a Voz responde: “Não faz mal. Sabe que eu não sou mal-educada como a senhora que estava ao seu lado”. Eu olhei para ela. A Voz olhou para mim. Disse que tinha ficado estupefacta com a cena, blablabla… nem sei ao certo o que ela disse, mas no final sorriu. Fez-me sentir apoiada, tranquila, compreendida. E, sobretudo, feliz.
E eis aqui a minha tese, excelentíssimo júri: as boas pessoas são felizes, porque tornam os outros felizes e os outros tornam-nas a elas felizes. A contrario sensu, as pessoas más são infelizes e deixam os outros infelizes.
Nada sucede por acaso. Tudo aquilo que fazemos acaba por ser o resultado do que alguém nos fez a nós, de modo que quando os nossos actos deixam de abonar em nosso favor devemos quebrar o ciclo. Transformar-nos no elo de uma cadeia diferente, onde atrás de nós está uma boa pessoa, que nos faz feliz, e consequentemente faremos nós felizes o próximo que esteja na fila.
Eu, que me preparava para um dia a ser azeda e amargurada, fui contagiada pelo sorriso de uma estranha que, entre roupa transpirada e toalhas molhadas, me mostrou que o mundo está cheio de boas pessoas que não merecem nada mais senão gentileza, delicadeza e apreço. Se a voz não me tivesse interceptado eu teria saído dali amarga, e esvaziaria todo essa amargueza na próxima pessoa que não me segurasse a porta ou que abrisse a boca para dizer algum disparate. Em suma, passaria o dia infeliz e a fazer os outros infelizes, e esses outros iriam para as suas casas e fariam infelizes as mulheres, os maridos, os filhos, os cães e os canários.
Mas o mundo foi salvo meus caros. Bastou uma pessoa e um sorriso franco para eu voltar a acreditar na bondade humana. E assim, durante o que restou do meu dia, tentei fazer os outros sentem-se apreciados. Quem sabe se não terão ido jantar também eles com a intenção tornar felizes os maridos, as mulheres, os cães e os canários.
Este é o efeito “pessoa feliz”.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Facebook makes the world go ‘round


Há uns anos atrás era o dinheiro que fazia o mundo girar. O poder. O sexo. O amor. Nada disso. Todos enganados. Facebook makes the world go ‘round.
O livro das caras pode ser usado, desde logo, para aqueles fins comezinhos e banais que todos já conhecemos: uma forma de ter os amigos sempre ali à distância de uma tecla, pa breve distracção que interrompe o expediente diário de trabalho, um motor de busca de amigos de infância há muito perdidos pelo caminho da vida.
É também um sítio de engate. Nesta altura podemos até dar um passo atrás e dizer que não o usamos para esse fim, que desfaz o romantismo da coisa, mas a verdade é que desde o seu inicio que tem sido usado para esse objectivo e hoje, como revelam as estatísticas, parece que na maioria dos pedidos de divórcio se encontra uma referência ao FB por entre as queixas e requeixas das partes desavindas. A quem queremos nós enganar?
Quando o Mark Zuckerberg criou este bicho estava longe de imaginar as proporções que iria tomar tanto mais que a sua ideia inicial era arranjar uma forma de comer gajas. Basicamente isso: um mecanismo para os nerds deste mundo conhecerem miúdas.
Mas o FB começou a ser empregue para os mais variados e inusitados fins: para investigar parceiros de negócio, para averiguar o paradeiro de alvos a abater, para coscuvilhar a vida de coleguinhas de trabalho, para controlar os contactos das caras-metade, para os empregadores formarem opiniões sobre futuros e potenciais trabalhadores e (agarrem-se à cadeira) para planear revoluções.
Já lá vai o tempo em que os gritos de guerra ecoavam por tambores ou eram difundidos por entre as notas musicais de uma canção passada de forma aparentemente ingénua numa rádio. Hoje em dia vai-se ao mundo virtual e reúnem-se as hostes. Mas, claro está, seria moroso e trabalhoso enviar um mail a todos e a cada um dos potenciais revolucionários, de modo que é bem mais fácil anunciá-lo no site onde todos estão (excepto uma ou duas pessoas estranhas no mundo que não merecem o ar que respiram).
O mais estranho é que neste caso os utilizadores do FB acabaram por ser os mais insuspeitos de todos: gente que à partida etiquetaríamos de conservadora, a viver em Estados repressivos e ditatoriais, onde o acesso a muitas páginas da net é limitado.
Mas contra todas as hipóteses, eis que primeiro a Tunísia, depois o Egipto, agora a Líbia, e ao que parece o Iémen, a Jordânia e por aí fora, preparam-se para pôr fim a décadas de repressão e dão o seu grito do Ipiranga.
Ora, eu estou orgulhosa desta gente que procura assim o seu caminho de forma tão corajosa. Estou também um pouco temerosa do que aí vem, há que dizê-lo. Não tanto porque é quase certo que estes novos e independentes produtores de petróleo se unirão e em jeito de monopólio imporão preços tão exorbitantes para cada barril que provavelmente vamos ter que mudar muitos dos nossos hábitos de mundo civilizados e mecanizado. Mas não tanto por isso. É que a par de jovens cheios de ideais e de boas intenções caminha a Irmandade Muçulmana, senhores com mais ideias do que ideais e com a intenção de impor a Corão como Constituição nacional. Adivinha-se o ressurgir da luta contra os infiéis, leia-se, nós todos. Os líderes da Irmandade parecem não estar de acordo quando ao reconhecimento do Estado de Israel, e se há uns que estão dispostos a respeitar compromissos previamente assumidos (hum… parece que estou a falar dos eternos duelos entre homens e mulheres), outros há que já esclarecem abertamente que se for necessário ir para a guerra, pois irão. Será que estamos a caminhos de mais mártires e mais atentados?
Gostava de ter uma boa resposta para estas perguntas, mas não tenho. O único que posso dizer é que tempos estranhos se avizinham.
Sentava frente à TV a ver o mundo mudar recordo a minha imagem nesta mesma posição, há muitos, muitos, muitos anos atrás, quando via no telejornal a queda do muro de Berlim. Também aí tive aquela sensação que o mundo estava a mudar perante os meus olhos, que a História estava a ser feita e que nada iria ser como antes. Agora tenho exactamente a mesma percepção, simplesmente, não estou optimista com este aroma de jasmim.
Há muita coisa que não sabemos sobre os acontecimentos que mudaram a nossa História. Não sabemos o que levou à queda do Apartheid. À I Guerra Mundial. À II Guerra Mundial. Enfim, os historiados deram-nos uma ideia dos eventos relevantes mas o impulso, o rastilho, a génese, escapa-nos completamente. O mesmo se passa aqui. Não sabemos o que aconteceu na cabeça daquele primeiro tunisino que se lembrou que se calhar era mais simpático viver em democracia. Mas sabemos como se espalhou a ideia, como tomou forma e vida própria.
Pois bem, agorinha mesmo, num autêntico efeito dominó, temos metade do mundo árabe a unir-se numa só voz para derrubar ditadores quase ancestrais, tudo devido a um chamamento de um site para comer gajas.