sábado, 26 de fevereiro de 2011

Estou aqui para te fazer feliz


Se queres que fale, eu falo. Se que queres que eu vá, eu vou.
Porque sou fraca? Influenciável? Patética? Não, porque te quero.
Eu quero-te a ti, eu queres que eu seja desta maneira e da outra, então eu, que te quero a ti, passo a ser assim, desta maneira e da outra.
Não tenhas lástimas de mim nem me vejas como mártir de uma cruzada semi-louca. Não mudo para que gostes de mim. Se eu me aventurasse nessa corrida perdia pela certa porque por mais que mudasse nunca ia ser aquilo que tu gostas. Mudo porque se te puder fazer mais feliz quando me sento à tua esquerda não vejo motivo para me sentar à tua direita.
Calem-se as vozes que dizem que quem gostar de mim terá que gostar assim mesmo
Já lá vai o tempo em que eu pensava que a minha glória era ser como sou, como nasci e sempre fui, e assim ficar impassível perante as muitas pessoas que passavam pela minha vida. Mas essa era a vã glória de quem vê a vida passar por si mas não a vive, não se embrenha nela.
Embrenhar-se na vida é uma coisa complicada. Não sabemos como vamos daqui sair dela, mas certamente traremos connosco mazelas, nódoas mais ou menos negras.
Por isso é bem mais simples permanecer trancados, com os nossos muitos defeitos e as nossas não menos virtudes, mas exactamente como viemos ao mundo. Pelo menos sempre podemos agitar bem alto essa bandeira do “fiel a si próprio” e do “eu sou como sou”.
Não quero tratar estas ideias com sarcasmo. Até acho muito bem que nos mantenhamos leiais aos nossos ideais mais básicos. Que não nos vendamos por um trabalho, ou apreciação social ou um namorado. Mas pobre daquele que morre exactamente como nasceu!
É tão mais fácil dizer que cada um é como é… não é? Assim se escondem debilidades, incapacidades, insucessos e outras frustrações que tais. Não é nossa culpa, nem falha nossa. Foi a genética que nos fez assim.
Mas… as pessoas mudam. A premente força das circunstâncias, o estado de necessidade, as relações que mantemos com os outros e aquilo que nos ensinam, o passar dos anos, as cabeçadas que vamos dando, tudo isso molda aquilo que somos.
Que isto não implique perder o melhor que há em nós. Mas se pudermos fazer alguém feliz, porque não fazê-lo? Mais ainda: se nós pudermos fazer a nós mais felizes, porque não fazê-lo?
Quero fazer-te feliz. Ser aquilo que tu desejas. Dar-te aquilo que tu procuras. Ao contrário do que por aí se diz nenhuma destas coisas acontece naturalmente. Não adivinho por graça divina os teus pensamentos, nem existe lei da física que me ponha no local exacto à hora exacta. Tudo isto exige esforço, dedicação, perseverança, para ir moldando as minhas voltas às tuas reviravoltas.
Aquilo que eu sou hoje resulta da minha vontade de o querer ser. Infelizmente não nasci assim. Nasci mais rezingona. Mais temperamental. Mais possessiva. E todos os dias digo a mim mesma que tenho que respirar fundo, dar três saltinhos e depois, mas só depois, dizer o que tenho para dizer. Senão sai-me tudo em correria por esta garganta fora e digo o que não quero, e desespero, e depois gasto o resto do tempo a desejar nunca o ter dito.
Há dias em que engulo em seco. Em que choro na almofada. Em que passo a noite a olhar para o tecto. Em que ando de olhar perdido. Mas mesmo assim continuo a tentar chegar onde for preciso para tornar o teu mundo melhor.
Esta não é a minha fraqueza. Pelo contrário. É a minha força.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

BBC Vida Selvagem: A territorialidade do macho latino


Bem sei que o mulherio é uma espécie complicada: queremos e não queremos, demoramos horas a escolher a roupa para depois a arrumarmos de novo e gritarmos que não temos nada que vestir, e outras pérolas que tais.
Mas, caramba, o lado masculino também tem as suas birras, se assim as quisermos chamar. Uma das mais marcantes (e por vezes irritantes) é a territorialidade.
Atenção que não falo da marcação de território entre casais, que nisso as mulheres são tão ou mais possessivas que os homens. Euzinha na frente da fila. Concretizemos: euzinha no oculista, a admirar as últimas modas para proteger as rugas do sol, quando, eis senão quando (que já faltava há muitos post) ouço uma voz melodiosa atrás de mim a cumprimentar o meu mais-que-tudo. Vai daí, largo os RayBan e os Versace, é foi ver-me a correr até ao balcão, esbaforida por dentro mas calmíssima, dominante, sexy e avassaladora por fora, a responder numa voz ainda mais melodiosa: “Então amor, já escolheste?”.
Porque, está bem de ver, entre namorados, amantes, apaixonados, o ciúme é natural e recomenda-se, desde que em dose não letal.
O que a mim me espante é a territorialidade entre amigos.
Não aquela que tem por fim confirmar que eles estão em boas mãos, que eu dessa tenho muita. Quando é um daqueles amigos muito queridos quero certificar-me que a nova babe o trata bem, o faz feliz, enfim, que lhe dá a ele o que eu gostava de encontrar para mim.
Mas mais do que isso, não sinto. Desde logo, nunca recusei convite algum porque o amigo leva uma amiga. Uma amiga? Melhor ainda: pode ser que empatibilize (se o Saramago podia inventar palavras porque é que eu não posso?) com ela e que fiquemos amigas, daquelas de ir às compras e ao cinema.
Já no caso dos meninos não é inusual que rejeitem um convite nosso pelo simples, mero, insignificante, pormenor de que não serão o único macho naquela coutada.
Nota importante: não falo daqueles amigos em situação duvidosa que se enrolaram e desenrolam ao sabor da transição das respectivas relações (que desses eu não tenho nem nunca tive), nem daqueles outros que nutrem por nós paixões assolapadas e alimentam a esperança de um dia nos sentir na pele (desses não tenho por agora). Mas de amigos, simples amigos, dos que nos tratam como um dos gajos.
A coisa desenrola-se mais ou menos nestes termos (diálogo ficcionado, originado a partir de uma súmula dos vários diálogos pelos quais tive que passar):
- “Queres ir jantar esta noite?”
- “Parece-me uma ideia excelente. Por acaso já tinha pensado nisso e até combinei com um amigo meu. Vamos os três”
- “Ah… três para mim é demais”
- “Três é demais??? Que disparate! Vá lá, vamos combinar horas”
- “Já te disse que não vou. Contigo e com um amigo não vou”
- “Mas eu estou farta de sair contigo e com as tuas amigas…”
- “É diferente”
Imaginemos agora – como de facto já aconteceu – que à última da hora o amigo do jantar desmarca, que entretanto liga uma amiga e que se combina novo jantar com ela. Se o dito amigo calha a ligar neste entretanto a pergunta é sempre esta:
-“Então, já estás pronta para ir jantar com o teu amigo?”
- “Por acaso ocorreu uma mudança de planos e afinal vou com uma amiga”
(pausa do outro lado da linha… alguma hesitação se denota)
-“Hum, nesse caso vou também. Importas-te?”
- “Eu não, mas assim seremos três… tu não gostas de coisas a três, certo?”
(eu a fazer-me de tonta)
- “Que disparate, vou com o maior prazer”
(…)
Enfim, deve existir uma explicação científica para estes episódios, mas eu não a vislumbro. De qualquer forma estou sempre à espera que ele levante a pata e me faça xixi em cima para que nenhum macho da manada se atreva a rondar por estes lados.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Filhos de um Deus menor


Ontem à tarde, enquanto pedalava desenfreadamente no ginásio, na fugaz ilusão de matar as calorias que tomaram o meu corpo de assalto, olhei para o ecrã da televisão que nos tenta distrair das dores musculares (e de alma, diga-se de passagem). Na SIC passava um documentário sobre a corrupção em África, mais propriamente no Quénia e na Serra Leoa. Nada de novo até aqui. Mas nunca é demais recordar. Recordar que há famílias que vivem em espaços do tamanho da minha casa de banho, mas… sem casa de banho. Que estas cabanas se ergueram no meio de dejectos humanos, onde a única água disponível é a que escorre em esgotos imundos e a luz apenas a do sol ou a das velas. Que há quem tenha que escolher a qual dos filhos vai dar pão naquele dia. Que em certos países até para conseguir trabalhar um dia é necessário subornar alguém, de modo que dois terços do salário com que supostamente se iria alimentar os filhos acabam por encher os bolsos de pessoas que vivem da miséria de quem os rodeia.
Como dizia, nada de novo. Para mim, sobretudo. Depois de um par de anos em Angola posso dizer que estes olhos viram coisas inimagináveis. A miséria humana na sua forma mais crua. Não somente a material, a que mata o corpo, mas também a miséria de valores, que mata ainda mais. Os meninos da rua apontavam uma arma por um par de ténis. Um deles entrava sempre comigo no supermercado para que eu lhe comprasse leite em pó para o irmão bebé. Tinha alunos que iam para as aulas nocturnas sem jantar porque as propinas da universidade não deixavam dinheiro para o pão. Um menino com o corpo queimado fez-me festas no cabelo (no cabelo de oiro, dizia ele), porque supostamente eu seria um anjo que tinha vindo do céu para o levar dali para fora e o tirar daquela vida para um mundo melhor. Muita coisa vi eu em Angola. De algumas nem consigo falar, mas não esqueci. Nem quero esquecer. E também não esqueço como, a certa altura, já tudo aquilo me parecia normal. A violência, a morte, a dor, o sofrimento, passaram a fazer parte da minha vida. Ou eu parte de uma outra vida, nem sei bem. É incrível o quão rapidamente o ser humano se habitua às coisas, por mais pérfidas que sejam.
Mas ainda assim, ali estava eu, quase surpreendida, suor a escorrer-me pela testa, porque queria perder os pneus que ganhei com toneladas de comida. Nem falo de tudo aquilo que foi para o lixo. Nem de todo o dinheiro gasto em presentes que provavelmente nunca vão ser usados. Nem da conta que acabara de pagar numa loja de meias , só pelo prazer de ter colantes de trezentas e oitenta cores e feitios, cujo montante daria para alimentar uma daquelas famílias durante um mês.
A vida é, realmente, muito fácil para nós. Haja dinheiro para pagar as extravagâncias que o cérebro humano se lembre de inventar, e assim atingiremos a felicidade suprema. Não falo contra vocês, que me estão a ler, apaziguados com as vossas transgressões financeiras. Falo de mim. Cada um lida com as suas futilidades da forma que mais lhe apraz. Eu escrevo sobre elas.
Não sou católica. Enfim, não renego nada, porque para isso teria que ter a certeza que o renegado existe e nem isso tenho. Já se vê que tão-pouco nego a sua existência. Digamos que admito qualquer das possibilidades e, em última instância, tenho fé em mim e em todos nós. Creio que tudo o que existe de bom a nós se deve. Mas, impiedosamente, e até para manter a coerência lógica, penso também que aquilo que existe de mau é nossa obra. Porque se eu acreditar em Deus sou forçada a acreditar em vários deuses, para no final concluir que aquela gente que me olha tristemente pelo ecrã da televisão é, afinal, filha de um Deus menor.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A minha vida é um filme (não indiano, mas a preto e branco)


Nos filmes a vida é bem mais interessante. Acontecem mais coisas. As pessoas são mais bonitas. O céu é mais azul.
Nos filmes sabemos que mesmo que o nosso herói seja no momento um desgraçadinho está destinado a grandes voos, e em breve vai conhecer o amor da sua vida num corredor de supermercado, ou vai ser condecorado com uma medalha, ou receber uma herança, ou matar alguém. Ou então acontece-lhe tudo isto ao mesmo tempo. Sobretudo a primeira hipótese, que já se sabe que nos filmes ninguém fica sozinho e longa-metragem que se preze tem sempre uma história de amor à mistura, que mais não seja para mostrar como faz mal às pessoas estar apaixonado.
Ora, dizia eu que nos filmes ninguém fica sozinho. A verdade é que não é bem assim. Nos filmes de hoje em dia toda a gente vive infeliz, as histórias de amor terminam mal, os cachorros morrem no último take. Enfim, um mar de lamentações. Quase chego a crer que actualmente, para um filme ser bom, o final tem que ser dramaticamente triste.
É por isso eu que prefiro os filmes a preto e branco. Neles todos os finais são felizes e toda a tempestade dá lugar a arco-íris.
Parece que há um par de décadas atrás o que fazia agitar o público do grande ecrã eram casamentos perfeitos, amantes abençoados, despedidas logo seguidas de reencontros. Enfim, lá havia um ou outro que escapava a esta corrente de felicidade e que ainda assim conseguiu ser grande sucesso de bilheteiras. Recordemos que a Scarlett não ficou com o seu Rhett Butler. E que a Ingrid (Berman) e o Humprey (Bogart) foram cada um para seu lado, apenas partilhando as memórias de tempos felizes em Paris. Mas estas são ovelhas negras num enorme rebanho de películas cujo último frame é um daqueles beijos ofegantes, boca com boca com toda a força possível, nem sinais de língua, a menina quase a desmaiar nos braços do galã. Assim vale a pena a vida ser um filme!
Hoje, em contrapartida, não há filme oscarizado que não termine em tragédia: uma morte, uma fuga, um divórcio, um carro a partir, uma despedida, um choro. É como se os realizadores soubessem que para cair nas boas graças da Academia têm que fazer o público chorar amargamente e, como se isso não bastasse, deixar-lhe uma memória bem triste para o acompanhar o resto da noite. Alguma coisa que nos amedronte e nos faça perder toda e qualquer esperança de a nossa própria vida ter também o seu happy end.
Aliás, nós mesmos, público, alimentamos essa tendência. Afinal, que dizemos nós quando saímos do cinema após ver uma daquelas comédias românticas em que tudo termina bem? “É giro o filmezito. Daqueles que termina bem, sem muito para contar, mas foi um bocadinho bem passado”. Notem bem: para já o “giro” vem sempre à baila, na melhor das hipóteses substituído pelo sinónimo igualmente paternalista do “é engraçado”. Depois, os malfadados diminutivos: “filmezito”, “bocadinho”, “historiazinha”, e aí por diante. E fazemos questão de frisar que o filme não pode aspirar a mais do que isto, ou seja, não sobe mais na nossa opinião precisamente devido ao seu final feliz. Moral da história: se a dita comedida romântica, que nos fez rir durante uma hora e tal, terminasse com um coração partido e alguém derramado em lágrimas, ah, aí já seria um filmezão.
Sim, porque se há coisa que nos entusiasma a nós, chacais da cinematografia, é um daqueles trágicos relatos, repletos se baba e ranho, com muito berreiro e muita desgraça, e se possível com pelo menos uma morte, uma traição, uma mulher abandonada (preferencialmente grávida), um órfão, e um cãozinho sem uma pata. Filme com tudo isto arrisca-se a arrebatar o Urso de Ouro do Festival de Berlim. Mas basta que contenha um destes elementos para já obter boas críticas entre os especialistas da sétima arte. Quando abandonamos a sala de cinema depois de um épicos destes, de olhos vermelhos e um nó na garganta, juramos a pés juntos que não vamos esquecer historieta nunca mais, e que tencionamos recomendar o título a amigos, primos, filhos de amigos e filhos de primos. E à vizinha da frente, se se portar bem.
E quanto mais apreciarmos um filme trágico mais bem cotados ficamos em termos intelectuais e de sofisticação. Pois já se sabe que só o povão gosta de finais felizes. As pessoas cultas alimentam a alma com aqueles filmes suecos entediantes, onde cada imagem tarde cerca de 10 minutos em ser substituída por outra, e os personagens dizem coisas incompreensíveis, desde logo porque o dizem em sueco, já se vê, mas a verdade é que tradução não ajuda em nada a decifrar um bando de frases sem sentido e com muitas pausas. Mas quanto mais sem sentido mais inteligente deve ser o diálogo, por isso vamos lá fazer cara de circunstância e preparar um aplauso no final. Rectifico: os aplausos são para o povo que gosta de coisas felizes. As pessoas iluminadas deixam a sala no mais profundo silêncio, entre suspiros e olhares de quem percebeu tudo e sabe que carrega em si o peso do mundo.
Ora, eu não quero que a minha vida seja um desses dramalhaços. Não quero um daqueles finais que permanecem na memória das pessoas, que mais não seja para lhes mostrar o que as espera a elas e às suas respectivas histórias de amor.
Eu quero ser uma comediazinha romântica. Eu quero ser um filme a preto e branco. Eu quero um final feliz.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

História de uma história de amor (ou história de quem só estás aqui porque quer)


E então ele disse-me: “Só estás aqui porque queres!”. Os olhos dela estavam húmidos ao relatar o episódio. E ficaram assim durante toda a tarde. E se calhar toda a noite, mas eu já não estava lá para ver. Nem nunca mais a vi assim.
Tinham discutido. O que não era raro. Ele, de forma também não rara, terminou a discussão da seguinte forma: “Só estás aqui porque queres”. E ela pensou para com ela (porque ela estava sozinha com ela) que, de facto, só estava mesmo porque queria. Isto é, não precisava do dinheiro dele, porque tinha o seu próprio salário, que não sendo glorioso chegava bem para as despesas correntes e para os caprichos ocasionais. Não estava pela companhia, porque tinha amigos em todos os números da sua agenda telefónica, os convites choviam ao som das mensagens que lhe interrompiam o sossego das suas tardes e das suas noites caseiras e, além do mais, ela não desgostava assim tanto da solitude a ponto de querer estar desesperadamente acompanhada. Não estava pelo sexo, que estes tempos liberais (ou até libertinos) deixam ampla margem de manobra para devaneios a moça descompromissada, com (mas também sem) palminho de cara. Não era pelo receio de ficar sozinha até ao final dos seus dias, porque já se sabe que o que hoje termina recomeça amanhã com nova personagens.
Então, porque estava ela?
Era ponto assente – para mim e para ela – que poderia partir a qualquer momento. Arrumava os seus parcos pertences espalhados pelas gavetas do apartamento, apagava o número dele do telemóvel e saía por aquela porta por onde tantas vezes entrara. Mas era também assente – para mim e para ela – que não queria partir.
Isto só não era ponto assente para ele. Ele, que não sabia nada de nada de sentimentos, de paixões, de carinho, de gostar, de ficar. Ele, que pensava que as pessoas partiam quando bem queriam, que pensava que se gostava e desgostava ao sabor das conveniências da vida, que não percebia o absolutamente fascinante e excepcional que é ter alguém ao nosso lado que está ali… só porque quer.
Certamente que nos conforta que alguém aceda a estar connosco, que perceba a falta que nos faz e fique. Mas então não estará ali por si mesmo, mas por nós. Coisa diferente é alguém ficar porque quer. De forma absolutamente livre, desimpedida, imune a qualquer tipo de constrição, fica. Como ela ficou.
Há muitas razões que nos podem levar a ficar ao lado de alguém. O amor, desde logo. A compaixão. O remorso. A ambição. A lástima. O agradecimento. O medo. A luxúria. Qualquer um destes motivos já deu corpo a grandes histórias de pseudo-amor. Encheu páginas de romances e ecrãs de televisão. Mas quando damos por nós a desejar uma vida para vivermos, é sempre aquele primeiro motivo o que aparece. Enfim, todos nós, menos ele. Ou talvez até ele o tenha desejado mas simplesmente, não o achasse possível. Ou talvez lhe fosse mais confortável explicar a presença dela por via de qualquer um dos outros motivos porque assim não se sentia tão pequenino por não conseguir estar à altura da história de devoção que se desenhava perante os seus olhos.
Não existem sanções nem censura para amores incorrespondidos. Mas já é de censurar a leviandade com que se tratam os sentimentos dos outros. Por outras palavras, ele não tinha que gostar dela em troca do que ela gostava dele, que isto das relações humana não é propriamente uma caderneta de cromos por cada sentimento se dá outro em troca. Mas tinha que o compreender, que o valorizar e que o admirar. Sobretudo, estava absolutamente proibido de o usar contra ela, como se fosse um defeito ou uma atitude reprovável.
Foi tudo isto que eu lhe disse. No finalzinho do sermão ela levantou-se e saiu em silêncio. Soube depois que nessa mesma tarde tinha arrumado os tais parcos pertences, tinha apagado o tal número do telemóvel e tinha fechado com estrondo a porta da casa do tal “ele”. É que, de facto, ela só estava porque queria. Ele já lho tinha dito muitas vezes, mas era o último a acreditar nas suas próprias palavras. Ela, por ela, ainda queria ficar. Mas partiu só para lhe demonstrar o quanto ele tinha razão.

A história até terminaria razoavelmente bem se ficássemos por aqui. Ele feliz sozinho. Ela menos feliz sozinha, mas à espera de querer ficar com outro alguém.
Mas sei que até hoje ela ainda não quis ficar com ninguém Nem ele quis ficar com ninguém. Nem ninguém quis ficar com ele.
De modo que passam os dois as noites sozinhos, ela a pensar porque ficou tanto tempo, e ele a pensar porque não ficou ela um bocadinho mais.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Juntos até que o divórcio nos separe


É um dado estatisticamente comprovado: o número de divórcio está aumentar mais assustadoramente do que o número de sapatos no meu armário. Dizem as línguas informadas que em cada dia do passado ano 72 casais outrora felizes oficializaram a sua ruptura. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística Portugal é neste momento um país com um divórcio por cada dois casamentos.
Ora, eu, romanticazinha de meia-cara sem cara-metade, fico perplexa, desiludida e, sobretudo, terrivelmente triste. Que raio nos aconteceu que já não conseguimos viver uns com os outros? Como é que nos tornámos tão egoístas e intolerantes? Será que este empedernido desejo de sermos jovens – forever young, I wanna be – nos transformou para sempre em putos mimados, que não vêm nada mais à frente senão o seu próprio biberão? A pior faceta do Peter Pan, so to say.
Como nunca fui casada não faço ideia do motivo exacto pelo qual um casamento acaba. Mas como já fui – e por diversas vezes – namorada, tenho uma ideia bastante aproximada do motivo pelo qual os namoros acabam. Claro que é diferente. Em principio – escrito este a negrito e sublinhado – enquanto se namora a paixão ainda vive na sua mais plena intensidade, não há monotonia nem desgaste. As coisas mudam quando, com ou sem aliança, se partilha o mesmo tecto. De repente, o outro deixa de ser tão interessante e tão misterioso. É que uma coisa é ansiar pela sua chegada, perfumado e arranjadinho. Outra é vê-lo de roupa interior esburacada, ouvi-lo na casa de banho, passar noites intermináveis ao lado dele a vê-lo jogar Pés. Acordar ao lado dela sem maquilhagem, ou de olhos esborratados porque se esqueceu de limpar a cara à noite, esperar duas horas por ela enquanto escolhe a cor do cinto e apanha e desapanha o cabelo frente ao espelho.
Não me admiro nada que a geração anterior não compreenda este novo fenómeno social, porque a verdade é que tão-pouco eu a compreendo. Não sei se eles eram mais felizes do que nós o somos agora. No tempo dos nossos avós ninguém se divorciava e muita gente manteve durante uma vida inteira um casamento doloroso, recheado de traições e mesmo de maus-tratos. No tempo dos nossos pais pouca gente se divorciava, e os que ousaram fazer-se deparam-se com uma censura social tão forte que provavelmente pensaram várias vezes em voltar atrás. Hoje o divórcio é uma pequena vicissitude na vida de uma pessoa adulta, superável com qualquer semana de férias num resort na Jamaica ou qualquer boy toy que nos suavize a perda. E muitas vezes nem sequer há perda ou tristeza disso porque a assinatura do papel só traz alívio e liberdade. Porquê? Bem, segundo uma voz sensata da geração anterior hoje somos intolerantes. Provavelmente também gostamos menos do que gostávamos dantes. Estamos mais rodeados por tentações, num ambiente mais tolerante a escorregadelas e, muitas vezes, mesmo incentivador de escapadinhas. O que antes era permitido apenas aos meninos está hoje ao alcance das meninas. É a igualdade de sexos no seus pior, ou seja, nivelando para baixo. Trabalhamos mais, estamos mais ausentes e chegamos a casa mais cansados e mais frustrados pela competição. E somos mais intolerantes. Não admitimos que o outro deixe a tampa da sanita para cima, ou o gel de banho aberto, ou que chegue a casa 20 minutos mais tarde, ou que esteja cansado e não queira sair ou que, simplesmente, ele seja ele e não um outro ele que idealizámos na nossa cabeça.
Quererá isto dizer que estamos irremediavelmente condenados a estes casamentos modernos onde cada um vive em sua casa e passam férias separados um do outro? Mas, assim sendo, porque se casam? Não seria mais simples e avisado continuar solteiríssimo e fazer o que lhes dê na real gana? De que me serve assumir um compromisso se no fundo continuo sozinha? Só por só… mais vale descompromissada.
Provavelmente sou antiquada. Dona uma alma antiga, como já ouvi dizer. Tenho a cabeça cheia de tolas ideias românticas, fruto de anos e anos a ler livros e a ver filmes. Uma espécie de lavagem cerebral que me lixa a vida e me torna uma inadaptada no mundo moderno. Mas eu ainda acredito que se é para passar a vida com alguém, então, é mesmo para nos comprometermos nesse intuito. Amor e uma cabana, blablablabla, e até que a morte nos separe.
Se tiverem dúvidas sobre a vossa capacidade para tolerar o barulho do outro a comer a sopa, ou o seu ressonar, ou a forma como deixa a roupa espalhada por toda a casa; ou tiverem medo de parar de gostar quando ele deixar crescer a barriga ou o bigode; ou não saberem se conseguirão resistir aos encantos de toda aquela gente divertida e sexy que vai enchendo as nossas vidas… enfim, se não tiverem certeza de nada disso, não se casem. E sobretudo, não deixem que ninguém se case convosco.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A geração dos Senhores Doutores


Este é um pensamento que me tem assaltado (mãos no ar, sou um pensamento!) variadíssimas vezes, mas lembrei-me de escrever sobre ele por causa de uma música. O que não é inédito: as músicas, os filmes, os livres, os amigos, as conversas que se ouvem no metro, em regra são a géneses de uma Cinderela descalça.
Ora bem, esta música de que vos falo que já foi considerada – por esse oráculo da vida portuguesa que é o jornal da SIC – como o hino de uma geração. Pois é, “Que Parva que sou!”, dos Deolinda. O hino dos 20 e poucos e dos 20 e muitos, que ainda não conseguiram o primeiro emprego ou saltam de emprego precário para outro mais precário ainda, que vivem em casa dos pais e da mesada que estes lhes pagam, e que não podem aspirar a voos mais altos na vida por um simples pormenor: é que depois de duas dezenas de anos a estudar descobriram que são demasiado qualificados para o emprego a que aspiram. Ou para qualquer emprego, já agora.
Não é inaudito que licenciados sejam caixas de supermercado ou que trabalhem nas obras. O que em si mesmo não tem nada, mas absolutamente nada, de mal, não fosse o facto de que quem dedica um bom pedaço de vida a livros e teses em regra tenha outro tipo de aspirações.
Eu fui uma das sortudas. Enfim, deixem-me rectificar: eu fui uma das sortudas que além disso trabalhou bastante. Mas tive a sorte de ter nascido com um QI que me permite desejar sempre mais do que tenho; tive a sorte de ter pais que me obrigassem a espevitar e a tirar notas que iam além do medíocre; tive a sorte de ter terminado a universidade numa altura que ainda não foi catastrófica; tive a sorte de ter sido imediatamente contratada para um posto que me tem aberto muitas portas; tive a sorte de ter feito boas escolhas profissionais desde então. E se nisto há mérito meu também há, obviamente, muita bênção das forças cósmicas, porque estou certa que nos centros de (des)emprego desse Portugal fora há gente igualmente capaz, mas menasmente abençoada.
Recordo a tragicomédia de uma amiga, licenciada em letras, que após meses de procura e já em desespero de causa concorreu a um emprego numa livraria como “acartadora de livros”, mas cujo posto lhe foi recusado porque era hiper-qualificada.
Sim, hoje em dia sabemos demais, somos bons demais. Porque se depois da licenciatura não conseguimos emprego saltamos para a pós-graduação, de seguida corremos para o mestrado, se nada aparece ainda nos metemos no doutoramento, e quem sabe no pós-doutoramento, e de repente damos por nós com trinta e muitos, cheios de diplomas, mas sem nenhuma experiência profissional. Ou seja, um investimento perdido para qualquer empresa.
Agora, uma coisa devo dizer: nem tudo é culpa do país que temos. Uma parte da responsabilidade assaco-a, é certo, aos vários Governos que ao longo dos anos têm permitido a abertura de cada vez mais faculdades, e cada vez mais cursos, cada um com uma designação mais estranha do que outro: Animação Sócio-Educativa, Engenharia Mecatrónica, Ergonomia, só para citar alguns.
Mas a outra parte é responsabilidade nossa. “Nossa”, isto é, de quem se iludiu a pensar que há por aí muitos filósofos a conseguir pagar as contas da luz e da água (ou melhor, muitos licenciados em filosofia). Em bom rigor, só conheço um Sócrates nos dias de hoje que, por coincidência também não é engenheiro, mas licenciados em engenharia.
Ou seja, o Estado, o Governo, este Governo em particular, não é o culpado de todos os males que existem no mundo. É da maioria, mas não de todos.
Uma parte é culpa de quem quer à viva força ser doutor, mesmo tendo consciência que é estúpido que nem uma porta. Perdão, mesmo tendo consciência de que é intelectualmente esforçado. Ora, nem todos podemos ser doutores. Assim como nem todos podemos ser bailarinos ou pianista ou electricistas. Eu, por exemplo, tenho um péssimo ouvido para a música. Dito isto, seria justo querer à viva força ser violinista? Pretender ganhar dinheiro com isso, forçar os outros a ouvir-me e, além do mais, a pagar-me para isso? A única forma de fazer da carreira musical modo de vida seria pagarem-me para não tocar. Ou então imagine-se que o meu sonho de menina era ser carpinteira: dar-me-ia isso o direito de exigir ao Estado que me garantisse um emprego no meu métier, não obstante eu ser manualmente idiota, por outras palavras, ser totalmente inepta com as mãos e com qualquer tipo de trabalho manual?
É claro, e sei bem disso, que nem toda a gente desta geração sem eira nem beira tirou o curso errada ou é profissionalmente incompetente. Longe disso. A verdade é que neste país as oportunidades são poucas para todos os que não nos chamamos João Pedro Soares. É verdade que os melhores cérebros estão a partir precisamente porque já perceberem que aqui a ambição bate num tecto bem baixinho e que as cerejas no topo do bolo estão reservadas para os filhos dos primos dos amigos.
Que nos resta fazer? A minha sugestão – pelo menos se não forem manualmente inadaptados, como eu sou – é seguirem as velhas carreiras manuais. É que vos garanto que não há canalizador, picheleiro ou pedreiro desempregado. E sem que um deles cá venha a casa, coce a cabeça, olha para mim e me diga, em tom paternalista: “Menina, isto vai ser caro!”. E não é que sai mesmo?

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Abaixo de 1,80m



Já sei que os homens não se medem aos palmos, mas os meus, incontestavelmente, medem.
Não que nunca na vida tenha tido namorados baixos. Mas depois que subi às nuvens não mais quis descer. Por isso, hoje, atrevo-me a dizer que abaixo de 1,80m nada mais existe.
Costumo apontar como alvo preferencial das minhas paixonetas o tal dito médico, alto, argentino e moreno, que nesta altura do campeonato já se transformou numa espécie de mito urbano da minha existência. Ora, eu até sou capaz de abdicar da nacionalidade da criatura, conquanto continue a nutrir uma forte preferência por latino-americanos. Também abdico (e talvez de bom grado) da profissão, até porque amigas mais experimentadas já me confidenciaram que isso de ter namorados médicos é mais místico que outra coisa, porque segundo consta os McDreamy’s deste mundo têm tempo para todas as operações e ecografias e endoscopias que lhes venham parar às mãos, menos para a sua Meredith. Até estou disposta (agora de menor grado) a abdicar da cor da tez e de me aventurar no menos apetecível mundo do homem branquela. Agora, minhas senhoras e meus senhores, do que eu não abdico, é da altura.
Pode a alminha ser careca, com nariz torto, barriguinha de cerveja, uma cicatriz, míope, o que seja, mas se não tenho que olhar para cima quando me monto nos meus 10cm de salto… esquece.
Não pode sequer ter 1,79m. Exige-se 1,80 m certinhos. E preferencialmente 1,85m. A gerência agradece.
Seria de pensar que, para pôr a fasquia tão alta, quem vos escreve é um colosso de 1,70. Até posso ser, desde que esteja de saltos. Despida dos ditos são um pedacinho de gente. Então, que raio de fixação é esta? Porque não me contento eu com um desses maravilhosos homens baixinhos que me passaram pela vida? Porque motivo o encanto, a inteligência, o sentido de humor, a gentileza e o sex appeal de todos esses baixinhos com quem fui dando de caras (enfim, estando eu de saltos a cara deles esbarra numa outra parte de mim…mas adiante), e me deixo sempre fascinar pelos tipos cujas cabeças sobressaem por entre a multidão. Que podem ser os maiores escroques do planeta, tontos e limitados, grosseiros e pouco interessantes. E esses sem dúvida que são mandados dar uma volta, como qualquer mortal. Mas ainda perco ali um ou dois minutos a tirar-lhes as medidas e a avaliar a situação, ao passo que os vários 1,75m que se cruzam comigo, na melhor das hipóteses, são queridíssimos amigos. Injusto? Admito que sim? Irracional? Muito. Mas que hei-de eu fazer? Uma miúda tem que ter os seus fetiches.
Ainda para mais, convenhamos, não é fácil ter namorados altos. Nunca se calam quando fazem viagens de avião ou de comboio porque lhes custa ter as pernápulas tão encolhidas. Usam roupa gigante que nem nos atrevemos a pedir emprestada (esqueçam a ideia de vestirem uma t-shirt deles e parecerem minimamente sexys… aquilo mais parece um vestido e já ponderei adorná-lo com um cintinho e usá-lo para sair de casa). Não os podemos distrair com demasiada conversa porque ainda se arriscam a bater com a cabeça em alguma porta mais baixinha. Passamos metade da vida em bicos de pés e de pescoço esticado para cima, colocando em sério risco a nossa coluna cervical. Quando os abraçamos sai homem por todo o lado. Só desvantagens. E no entanto…
Mas o pior mesmo é a dificuldade que este requisito suscita quando se vive num país como o nosso, onde apenas uma pequena percentagem da população masculina poderia aspirar a jogar basquete. Digamos que são um bem escasso na nossa economia nacional.
Neste momento já não acalento muitas expectativas acerca do colega com quem habitualmente converso ao telefone, do amigo do amigo de quem tanto me falam, do tipo sentado na mesa em frente da minha no restaurante. Porque o mais certo é que no dia em que conhecer o coleguinha tenha que olhar para baixo para falar com ele; que o tal amigo do amigo fique exactamente com os seus olhos ao nível dos meus quando me vier buscar para dançar; e que o fulano jeitoso do restaurante, quando termine o seu café e se ponha de pé, mais pareça que continua sentado.
Mulher de pouca fé? Sim, talvez. Mas a verdade é que ainda está fresca a memória de uma foto que vi, e que me levou a pensar cá para com os meus botões e os meus sapatos: “Eh pá!”. Um senhor bem parecido. Moreno, como convém. Olhar de mau, como agrada. Traços bonitos, como se deseja. Potencialmente interessante, como se exige. Ora, guardei no meu cantinho de expectativas e fantasias a imagem da foto, e alimentei a esperança de em breve a peça me aparecer à frente. Coisa que sucedeu no há uns dias atrás, o que demonstra que as expectativas e as fantasias por vezes também se realizam. Infelizmente, não exactamente da forma em que foram fantasiadas e expectativas, pois sucede que a alminha estava pouco acima da altura média dos sete anos. Não o vi a sentar-me, mas não me espantaria que se virasse de costas para mim e subisse primeiro um joelho para a cadeira e depois, com esforço, o outro, exactamente como faz o meu priminho de 6 anos. Desilusão? É dizer pouco, meus caros.
Em suma, abaixo de 1,80m para mim existe um deserto mais árido do que o Saara.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Caixa Negra



Por motivos que me escapam, aos olhos masculinos desenha-se uma estreita ligação entre o corpo feminino e o mundo da aviação. Como se fizéssemos todos parte de um gigantesco Top Gun, take my breath away e raio que o partam (não desdenhes miúda, que há mais de uma dezena de anos, quando viste o filme, choraste baba e ranho, e ainda és bem capaz de ter nutrido um ou outro sentimento mais malicioso pelo anão Cruise), os espécimes masculinos gostam de olhar para nós como se fossemos uma qualquer espécie de máquina. Desde o corriqueiro e brejeiro “pareces um helicóptero, que gira e b/voa”, até ao comentário ligeiramente (ligeirissimamente mesmo) mais elaborado, que nos compara a um avião (imaginem o que é ouvir o tio do nosso melhor amigo “segredar-lhe” em alta voz isto ao ouvido… e nós ali ao lado… a ouvir), tudo gira em torno de hélices.
Em suma, no universo masculino, nós somos, basicamente, aviões.
Logo, pus-me a pensar: se os braços e as pernas são um avião que levo regularmente ao ginásio para manutenção, será o meu cérebro a caixa negra?
Afinal, também nós registamos tudo o que se passa connosco. Enfim, tudo não. A memória humana é maravilhosamente selectiva. Direi antes, estupidamente selectiva, porque em boa verdade apaga tanta coisa que deveria guardar consigo para o resto dos seus dias e esquece as coisas importantes. Em contrapartida, é capaz de guardar nos mais recônditos cantos do cérebro pormenores que não interessam a ninguém.
Será que quando me encontrarem, depois do desastre que se anuncia ser a minha vida, irão em busca dessa preciosa caixa negra, e poderão ouvir as últimas palavras que ecoaram nos meus ouvidos? E aquelas mais importantes? E as mais duras? E as que mais me magoaram? Será que daqui por uns anos o meu cérebro estará ligado a uma máquina, no meio de um grupo de técnicos e peritos vários, a esmiuçar tudo o que disse e o que me foi dito, e a fazer relatórios desta novela que é a minha vida?
E se eu sou um avião, quem me pilota? Serei eu o comandante? Ou será que não passo do co-piloto, e já passei o comando a alguém, que agora me comanda a seu bel-prazer? A um pirata do ar, talvez? Pior ainda: será que eu sou uma mera hospedeira de bordo da minha própria vida?
Que tipo de mercadoria levo comigo? Coisas boas? Coisas más? Coisas proibidas? Não deveria ter mandado abrir a mala antes de a mater cá dentro, isto é, ter analisado bem as situações antes de me meter nelas, ter avaliado melhor as pessoas antes de as ter convidado a entrar na minha vida? Da próxima vez que alguém se aproximar de mim faço-o passar antes na alfândega, ou submeto-o ao detector de metais ou, melhor ainda, peço-lhe para ser farejado por daqueles cães que encontram tudo: coca, bombas, e com sorte, vibradores escondidos em malas inocentes.
Será que tenho andado a aterrar onde não devia? Será que tenho aterrado sem a devida autorização da torre de controlo? Cá para mim eu e a torre não andamos a comunicar nas melhores condições. O controlador aéreo fala-me em “Alpha”, “Bravo”, “Charlie”, “Delta”, e sucede que eu não domino o alfabeto fonético, de modo que pareço uma barata tonta, para frente e para trás em espaço aéreo inimigo, e a sobrevoar zonas proibidas, para depois ser forçada a aterragens perigosas em solo estrangeiro e inclinado. O que me estranha é como é que eu ainda não parti uma asa…
Mas um belo dia ainda aterro com o focinho no chão. Ou parto mesmo a tal asa. Ou expludo no ar. Ou, simplesmente, perco-me para sempre no Triangulo das Bermudas. Espero que nesse dia haja ao menos um alguém que tenha curiosidade em encontrar a minha caixa negra e saber o que se passou comigo e como voei neste vida.